14.4.09

Uma questão de fé. (Faith/Void)

Guardei uma imagem mental da Isabel na cabeça. É mais que uma, aliás, mas não mais que duas ou três; como fotografias, instantes breves e triviais mas que me ilustram aquilo que ela era. Num, ela está sorridente a apanhar o cabelo no alto da cabeça. Não está sorridente, está mais do que isso; sorri com a cara toda enquanto conta a manhã com o Zé a jogar básquete no campo do adro da igreja de S. José, em Coimbra, claro. Noutra serve-me Coca-Cola enquanto me diz, a mim e à Jenny, outra vez sorrindo com a cara toda, os olhos, os malares, o pescoço, todos rendidos naquele sorriso, que a ressaca cura-se com Coca-cola (e temos juntas lhe dado razão desde então). Ainda noutra, mostra-me a casa nova, arredores de Coimbra, uma zona cheia de terras alagadas e cegonhas, e o jardim, completamente florido, cheio de cores, vibrante, à sua imagem. Aqui e acolá consigo me lembrar de outras frases, das vezes que foi à Madeira, coisas assim, mas estas três imagens ninguém mas tira, polaroids de momentos de nada que me acompanham desde que nos despedimos.

Era uma pessoa demasiado especial para ser facilmente esquecida. Demasiado especial para ser levada assim, em poucos meses de luta. Às vezes acredito mesmo nisso da Isabel estar bem mais resolvida na vida do que qualquer um de nós, como disse a Ru este fim de semana "espiritualmente mais evoluída" do que nós - não tenho dúvidas. Egoisticamente, isso consola-me. Qualquer outro ficaria por aí a penar, a resolver tudo o que não resolveu na vida terrena, assombrando a vida de outros e os próprios espaços que ocupava, ela não; ela pode ficar tranquilamente a observar-nos, feita anjo da guarda que sempre fôra em corpo. Imagino-me a mim morta, com tanto para dizer e fazer ainda. Sou um ser tão imperfeito e, por culpa minha, nada do que me pertence é meu. Parece que passamos pela vida mortos, que estúpidos.

Não sei lidar com a morte como perda senão como falha. O meu curso não mo ensinou nem a vida, no final de contas. Pela primeira vez tive que enfrentar que não mais hei-de encontrar-me com uma pessoa que me é querida. Cruzar assim normalmente, se é que me entendem. A Isabel estará por aí? Ler-me-á este post? Não sei. Recentemente deixei de acreditar nas minhas crenças e parei de duvidar dos meus disbeliefs. Está tudo ao contrário neste mundo terrível. Se ao menos todos aprendêssemos a viver em linhas direitas, não sei. Não sei lidar com a vida como ganho senão como construção.

Este Deus que me suportava as dores e as alegrias fez-me pouco sentido nos últimos tempos, que espécie de ser grandioso - egoísta por sinal - rouba uma mãe ao seu filho, uma filha aos seus pais, uma mulher necessária ao mundo que dela precisa? É injusto, eu sei, alguém tem de morrer, enquanto por minuto nascem milhares de crianças, mas porquê? Devia aqui caber sempre mais um. E que tipo de oração é esta que faz parar um coração enquanto batem outros milhares? Na Igreja falam-nos do poder da fé, no poder do Ser omnisciente e omnipresente que a todos ajuda - a Isabel era religiosa, católica praticante, uma mulher cheia de fé - também a admirava por isso; porque não lhe pôs Deus a mão por baixo? Como é que é possível nestes anos todos ter acreditado que Ele mudava o curso das coisas se Nele acreditássemos?

Ainda O vejo nas pequenas coisas, embora com alguma dificuldade, renova-se-me a fé quando recebo o Sol na cara, quando choro emocionada, quando amo alguém sem mais nada, quando o roseiral da campa da Isabel desabrocha em flores do mais belo rosa pálido que já vi. Mas não O noto muito capaz de grandes milagres. Não agora, não aqui.

Ironicamente acabo o post e o Bill Callahan canta "It's time to put God away". A Ele voltaremos. Haja fé, pelo menos nisso.