30.3.07

Mazzy Star

Para J.B.

A tarde desceu sobre o bairro (bem frequentado e habitado, em Lisboa) como uma cortina para morrer nos braços das suas ruas inclinadas. Desceu sem se dar por isso, enquanto os dois dançavam, de olhos postos no chão por timidez. E porque dançavam e porque ouviam os discos que ela não conhecia (e passava a gostar) e porque ele redescobria aquelas canções nos olhos dela (e nas suas costas, confessaria ele mais tarde), deixaram-se ficar, cada um virado para si mesmo tentando acreditar no outro.

Conversou-se de tudo. Fez-lhes falta um telescópio que lhes confirmasse a beleza da lua que, naquela noite, se fazia clara. Ela foi-se expandindo naquela casa, acomodando-se ao sofá e ao tapete, ampliando o espaço que ocupava.

Ela gostava de conhecer aqueles discos todos. Conhecê-los como ele, cantá-los e seguir-lhes os ritmos, antecipar-lhes as inflexões e as ternuras.

Hoje ela ouve Sparks
This town ain't big enough for the both of us
(...)
Heartbeat, increasing heartbeat
,
não sabe se ele gosta dos Sparks e não sabe se isso lhe interessa.

Naquele dia despediram-se ao som de Mazzy Star. So tonight that I might see. O olhar perigosamente cúmplice e fundente, as mãos cruzadas uma na outra com medo de se agarrarem, os lábios mordendo-se (e a língua que os humedecia, nervosa). Talvez esta noite eu visse dois seres banhados pela lua se intersectarem, deixando a vida correr na rua, por ela abaixo até ao rio.

Não se chegariam a beijar à luz de nenhuma ciência ou estrela. Nunca se chegariam a beijar apesar de tão próximos.

Fade into you. Talvez noutra noite, noutra rua, noutra vida, ela deixasse de ser a ela que o olhava e ele fosse sempre ele, e ela fosse ele e ele fosse ela.

A ouvir, Mazzy Star :: Fade into you

28.3.07

A Primavera

Apercebo-me que não escrevo há muito, há demasiado tempo. Que diferença, supõem vocês, existe entre o demasiado e o muito? Ponho-me a pensar nisso, penso nisso e noutras coisas. Há tantos poucos que são demasiados.

O pouco sabe sempre a pouco, por muitas voltas que o mundo dê. O muito nem sempre é demasiado, aliás às vezes o muito não chega a ser suficiente, quanto mais ser acima da conta.

Penso nestas parvoíces. Penso na Primavera e na palermice que é toda a gente dizer é da Primavera quando alguém diz que está apaixonado. Desde que já tenha passado o dia 21 de Março, é da Primavera.

É da Primavera. penso eu, para me convencer. Se for só da Primavera, chega-se ao dia 21 de Junho e passa, acaba, finito, over. Não me parece, portanto párem lá com essa desculpa idiota da Primavera.

Da Primavera ou não, há qualquer coisa diferente no ar. Sim, brilha o sol, regressam as andorinhas, as flores desabrocham, os passarinhos fazem os ninhos e as árvores ganham novas e verdejantes roupagens. Sim, na Primavera há isso tudo, mas isso já escrevíamos nós nas redacções da quarta classe.

(Redacções essas que invariavelmente acabam com Eu gosto muito da Primavera.)

Do que eu mais gosto da Primavera é da surpresa diária. Bom, eu gosto de ser surpreendida todos os dias, em qualquer estação do ano, mas a Primavera é, de todas as estações, a que tem doutoramento em surpresa. Ora é uma árvore que recuperou a sua folhagem, ora é um novo ninho, ora um casal de passarinhos que namoram, ora um canteiro florido. Isto do canteiro florido é uma forma bem parva de reduzir aquilo que mais gosto na Primavera a um canteiro florido: como é bom olhar para os cantos da cidade que nos rodeia ou ir passear de carro por estradas recônditas e descobrir as flores e deliciar-se com a forma como ocupam o seu espaço, às vezes um quadrado de terra, às vezes os ramos de árvores ou arbustos, às vezes muros de quintais. Comover-se com a organização irrepreensível das cores, as amarelas, as brancas, as rosas, as liláses.

Ah, como eu gosto da Primavera.

(Peço desculpa se não estou deprimente/ deprimida mas a vida não me tem dado razões para isso, muito pelo contrário. Aliás, acho que escrevo pior quando estou assim mais tranquila. É no que dá escrever para expulsar fantasmas.)

23.3.07

As canções da minha vida IV

Harry Nilsson :: The Moonbeam Song

Have you ever watched a moonbeam
As it slid across your windowpane
Or struggled with a bit of rain
Or danced about the weathervane
Or sat along a moving train
And wondered where the train has been

Or on a fence with bits of crap
Around its bottom
Blown there by a windbeam
Who searches for the moonbeam
Who was last seen

looking at the tracks
Of the careless windbeam
Or moving to the clacks
Of the tireless freight train
And lighting up the sides
Of the weathervane
And the bits of rain
And the windowpane
And the eyes of those
Who think they saw what happened...

Have you ever watched a moonbeam
As it slid across your windowpane
Or struggled with a bit of rain
Or danced about the weathervane
Or sat along a moving train
And wonder where the train has been?

Looking at the tracks
Of the careless windbeam
Or moving to the clacks
Of the tireless freight train
And lighting up the sides
Of the weathervane
And the bits of rain
And the windowpane
And the eyes of those
Who think they saw what happened?

"Esta é a última de hoje. O critério tem sido escolher aquelas que me vêm à cabeça imediatamente, sem pensar muito. Ou mesmo sem pensar nada. Todas estas são músicas que me enchem o coração. Hoje só me lembrei de oldies e, a continuar com este exercício, provavelmente mais canções pré-anos oitenta (isto é, pré-o meu nascimento) terão aqui o seu lugar. Que isto não vos aborreça de morte é o meu único desejo (bom, e já agora que sirva para alguns "ah!oh!" de exclamação, porque são canções letalmente bonitas. A forma como me esmagam devia levar a prisão perpétua. Ou não, ou não.) E, já devem saber, se clicarem nesta frase podem ouvir a mais bonita canção alguma vez escrita sobre o luar."

(Mais uma d') As canções da minha vida III

Curtis Mayfield :: Move on up

Hush now child,
and don't you cry
Your folks might understand you
by and by
Just move on up
towards your destination
Though you may find
from time to time
A complication

Bite your lip
and take a trip
Though there may be
wet road ahead
You cannot slip
So move on up
and peace you will find
Into the steeple
of beautiful people
Where there's only one kind

So hush now child
and don't you cry
Your folks might understand you
by and by

Move on up
and keep on wishing
Remember your dreams
are your only scheme
So keep on pushing.

Take nothing less -
not even second best
And do not obey -
you must have your say
You can past the test

MOVE ON UP!

"Há lá música mais uplifting do que esta? Não há, meu Deus. Música para ser feliz, mesmo quando o tempo ou a vida estão chuvosos. O sol também pode brilhar na vossa vida, ao clicar nesta frase, claro. Música para dançar, para fechar os olhos, para sorrir por dentro e por fora, música para amar e ser amado. Viva o Curtis Mayfield, é o maior."

As canções da minha vida II

Billie Holiday :: Blue Moon

Blue moon,
you saw me standing alone
without a dream in my heart
without a love of my own.

Blue moon,
you knew just what I was there for
you heard me saying a prayer for
someone I really could care for.

And then there suddenly appeared before me,
the only one my arms will ever hold
I heard somebody whisper, "Please adore me."
and when I looked,
the moon had turned to gold.

Blue moon,
now I'm no longer alone
without a dream in my heart
without a love of my own.

"Espero que estejam a gostar desta tontice. Esta miúda é egocêntrica p'ra caramba, não é? De qualquer maneira, é aqui que devem clicar para ouvir a canção. Já desconfiavam, não? Pois."

As canções da minha vida I

Al Green :: Let's stay together

I, I'm so in love with you
Whatever you want to do
Is all right with me
'Cause you make me feel so brand new
And I want to spend my life with you

They say since, since we've been together
Loving you forever
Is what I need
Let me be the one you come running to
I'll never be untrue

Let's, let's stay together
Lovin' you whether, whether
Times are good or bad, happy or sad
Whether times are good or bad, happy or sad

Why, why some people break up
Then turn around and make up
I just can't see
You'd never do that to me (would you, baby)
Staying around you is all I see
(Here's what I want us to do)

Let's, we oughta stay together
Loving you whether, whether
Times are good or bad, happy or sad

"Olá, é nesta frase que devem clicar para ouvir uma das músicas da vida da Joana."

O ciclo: "As canções da minha vida"

Não pretendo, de maneira nenhuma, mostrar-vos novidades musicais. Aposto até que as canções que aqui vos vou dar acesso já as conhecem de cor e salteado. Muitas delas fazem parte de bandas-sonoras de filmes, no entanto o importante aqui é que fazem parte da banda sonora da minha vida.

Posso ouvi-las repetidamente durante um dia inteiro (já aconteceu, por dias a fio, com todas elas) que não me saturam nem nunca deixam de fazer sentido (como a palavra que se repete tanta vez que a certa altura perde qualquer significado). Estas canções não. Ouvi-las-ei para sempre. Aninhar-me-ei nelas para sempre também.

À falta de ideia para posts bonitos, ficam com algumas das canções mais bonitas deste mundo e do outro (para citar uma pessoa muito muito especial).

(E a palavra "canções" e "canção" tão em desuso, quando é uma palavra tão cheia de sabor?)

21.3.07

Here it comes: a better version of me

I am likely to miss the main event
If I stop to cry or complain again

So I will keep a deliberate pace
Let the damned breeze dry my face

Oh, mister, wait until you see
What I'm gonna be

I've got a plan, a demand and it just began
And if you're right, you'll agree

Here's coming a better version of me.
Here it comes a better version of me.

Fiona Apple

É o futuro, Fiona, e estende-se à nossa frente.

18.3.07

Missa dominical



Le Tigre :: Deceptacon



The Streets :: Let's Push Things Forward



The Streets :: Don't Mug Yourself

(isto é, o Original Pirate Material do Skinner: papei-o todo hoje)



Aretha Franklin :: Respect

(que é como quem diz, o disco 2 da compilação Atlantic Gold)

*vénia*

16.3.07

Afinal há uma coisa pior que Céline Dion

E essa coisa é Céline Dion em canto gregoriano enquanto se faz [nos fazem] a depilação.

Joana, em directo para o Fórum Sons

Enquanto ouvia pela primeira vez o novo disco dos Arcade Fire, teci umas considerações acerca do que ia ouvindo no Fórum Sons. Não quero que o texto se perca, portanto aqui fica para mim e para os eventuais interessados. [e assim o blogue sempre é actualizado.]



Arcade Fire :: Neon Bible

"A minha 1ª audição do Neon Bible, em directo para o Forum Sons:

Black Mirror:

começa baixinho e espera-se uma explosão (sim à Funeral), mas a canção mantém-se assim baixinho. Ouve-se de novo a ver se se nos escapou alguma coisa. Afinal a canção tem uma certa raiva contida que a valoriza e as cordas trazem não a explosão mas o libertar suave da raiva.

Keep the car running:
gosto muito, gente. classe. dançável e ao mesmo tempo introspectiva (how they do it, i don't know).

Palminhas, não posso ouvir canções com palminhas que gosto logo.

Neon Bible:
não gostei muito. O início promete mas a canção fica aquém daquilo que o seu início promete. Esta canção mais trabalhada seria um tesourinho. Se calhar, daqui a três horas vou gostar da sua simplicidade, quem sabe?

Ou se calhar não preciso de duas horas, melhorou um pouco ao meu ouvido agora mesmo. Mas acho o refrão um bocado pateta "neon bible" vezes mil torna-se quase enfadonho de tão repetitivo. Adiante.

Intervention:
esta não vale. Gosto muito desta desde que a ouvi há algum tempo. Épica, sim. Doce, sim. Quando ouvia, não percebia porque havia tanta gente a dizer mal do disco. Isto é arcade fire vintage.

Black Wave / Bad vibrations:
também já tinha ouvido. gosto da progressão desta canção, de como começa de alguma forma sorridente (a voz feminina ajuda, claro) e de como se torna tão rica, um lamento em forma de orquestração intensa. gosto.

Ocean of Noise:
é aqui que está a maior referência ao bruce springsteen, certo? [devo avisar que já me tinha esquecido da discussão do antigo forum e quando pensei "elá isto parece springsteen" é que me lembrei do aceso debate.] esta música é uma pausa no disco, mas não a acho minimamente extraordinária. digam-me que esta faixa só está para encher chouriços, digam-me que os próprios arcade fire o disseram. por favor, digam.

The well and the lighthouse:
Ah aqui estão eles de volta (acho que uns ETs tomaram o lugar deles quando estavam a gravar a Ocean of Noise). Mas esperem lá, isto agora está mais chatinho, este final. A partir dos 2 minutos e picos de canção, isto fica arrastado, parece que mais valia ter acabado ali. chega.

Antichrist blues television:
Punham umas palminhas aqui e eu destava aos pulos, só para gastar a energia final desta semana. por um lado, ainda bem que não tem palmas, que o fim de semana vai ser daqueles. mas gosto desta canção, é electrizante. e sempre posso bater eu as palminhas, para ficar ainda melhor. "now i'm overcome"

ENA GOSTO MESMO DESTA MÚSICA, BOA P'RA MIM! : ) AFINAL TEM PALMAS, ESTA CENA. PORRA! A MELHOR CANÇÃO ATÉ AGORA. como é que é possível que ainda ninguém tenha falado nesta canção? Foda-se, linda, linda. <3

Windowswill:
esta também é extremamente bonita. Pungente e desolada. Gosto muito.

(Guardaram o melhor para o fim?)

No cars go:
oiço agora a melhor canção do disco, não é o que dizem? está a começar. olha afinal também já a tinha ouvido. parece que sim, que as melhores faixas ficaram para o fim. esta é linda. de repente pareceu-me go! team, mas só durante uns segundos - deve ter sido ali um HEY! qualquer. depois, torna-se uma canção em que os arcade fire vão directos ao assunto e deixam-se de tretas.

[é que até agora, ainda não disse, tenho achado que eles andam à roda das canções, como quando se espreme uma laranja e depois quando já não há polpa, ainda se gira o pobre citrino para ver se o sumo dura. parece que querem fazer render o peixe.]

mas nesta faixa não, todos os instantes são necessários e igualmente bonitos. e o crescendo final, arrepiante.

my body is a cage: esta faixa = rubor[= joanamaria, uma querida que conheci através do forum], estava desejosa de ouvir por causa do tdi que ela lhe fez. o que se calhar foi mau, porque criei expectativas e não estava à espera que a faixa fosse assim. acho que até já tinha musicado alguns versos, depois de ter lido o tdi.

de qualquer forma, há uma coordenação muito boa com a letra e a canção, dolente. c'um raio, o corpo dele é uma gaiola que o impede de dançar com quem ele ama. isso deve ser horrível.

Conclusão: estão aqui uns Arcade Fire que não estavam no Funeral, seja isso bom ou mau.

Nota:
de A a Z, um P.

Melhores faixas do disco, para mim: no cars go, black wave/bad vibrations, antichrist blues television e intervention.

Feels [eu], em directo de Lisboa, a ouvir o Neon Bible.

*fim de emissão*"

12.3.07

Minha teimosia é uma arma p'ra txi conquistá

A minha teimosia é uma arma pra te conquistar
Eu vou vencer pelo cansaço
Até você gostar de mim, mulher, mulher
Mulher graciosa, alcança a honra
Você alcançou, mulher
Minha amada, minha querida, minha formosa
Vem e me fala que eu sou o seu lírio
E você é minha rosa
Mostra-me teu rosto
Fazei-me ouvir a tua voz
Põe estrelas em meus olhos
Músicas em meus ouvidos
Põe alegria em meu corpo
Junto com amor de você
Mulher, mulher
La, la, la, la
Mulher, mulher
Por que você não pensa
E volta pra mim
Por que você não vem?

Jorge Ben Jor :: Minha teimosia, uma arma para te conquistar

8.3.07

Sycamore [O Plátano]

Sacudiu os tapetes e as colchas da casa velha. Abriu as portadas das janelas, de par em par, como escreviam nos livros da primária e nos contos que a mãe lhe lia ao deitar

e de par em par como ela andava, desorientada, como uma borboleta de flor em flor, de pólen em pólen, procurando o pólen mais doce e a flor mais suculenta

e a frescura da serra invadiu a casa, percorreu corredores e quartos e ajeitou-se nos cantos, no soalho, nos candeeiros, nas esquinas.

A mobília estava coberta por lençóis, tão esburacados e translúcidos que deixavam antever móveis empoeirados, madeiras escuras, gavetas pesadas. Passou os dedos pelos móveis e escreveu através do pó, a madeira de repente brilhante adivinhando-se entre as letras, entre os ácaros. A água podre de uma jarra vazia sobre a mesa da sala difundia pela sala o odor fétido e acre que abandonara na cidade,

na sua velha vida.

Abriu a porta da frente - entrara para a casa velha pela porta das traseiras,

entrara radiante na sua vida nova a recomeçar ali na casa velha

e o verde da montanha que adiante se erguia entrou pelos seus olhos a dentro. Se do vento, se do medo, se da alegria, se da comoção, não sabe, mas arrepiou-se e abraçou o peito, de repente frio e quieto, para logo se lançar em batimentos acelerados.

Afastou com os pés as folhas que escondiam o chão do alpendre, mas o manto insistia em permanecer, teimoso. Com uma vassoura quase careca arrastou para um canteiro de jardim, todas aquelas folhas, sinal óbvio de ausências longas e (demasiado?) prolongadas.

Tudo naquele lugar permanecia inquietantemente igual. O som surdo do riacho - daqueles sons que podemos nem dar por eles, mas estão sempre presentes - correndo não muito longe, o vento suave e frio movendo continuamente os ramos e as folhas, pelo chão e pelo ar e o mover do mar e das marés rolando pedras de calhau pela praia.

Tudo naquele lugar lhe parecia tranquilamente igual. O verde da montanha - ou os verdes, os vários tons se confundindo encosta acima, vencendo rochas e ar rarefeito. O amarelo e rosa-pálido das flores, algumas delas plantadas pelo avô, outras que ali cresceram, silvestres, em terra fértil de amor e húmus. O azul do mar, feito de profundezas e dias brilhantes, de algas, sargaço e desconhecido.

Tudo ali lhe era familiar. A casa de cal e o seu varandim de ferro verde e tapa-sóis de madeira rangente, o alpendre e a cadeira de baloiço, as anoneiras e as camas de rede, as fechaduras e as dobradiças enferrujadas pela maresia e a imobilidade. As vinhas, os cachos de uvas podres ou secas como passas ao sol e o perfume doce, quase enjoativo que o tempo fizera grudar às paredes da casa e à terra do quintal. E o velho plátano, mais velho que as vigas que sustentavam a casa e mais velho que as pedras dos muros que a rodeavam, o velho plátano, que se erguia do lado esquerdo da casa, as suas folhas recortadas como cada episódio da vida, como cada fotografia mental tirada em cada dor e em cada alegria. Como o avô desejara cortar aquele plátano, serrar o tronco desenhado a lascas de madeira, tingido a dois tons, sólido e imponente como uma ilha, e como, no último minuto, sempre desistira, de lágrimas nos olhos. O plátano alto e assustador, o plátano acolhedor e vibrante.

A ele regressaria. Sempre o soube. Àquele plátano, que a vira crescer sob a sua sombra. Àquele lugar, que era seu por direito e dever.

Ali regressou para finalmente ficar.

"And you won't get hurt
If you just
Keep your hands up
And stand tall
Like sycamore."

Bill Callahan

5.3.07

Juntar palavras ao som do Bill Callahan (provavelmente I)

Parece tontice, mas de palavras fazes pedras que partem vidros e corações. E com pequenos passos enfrentas grandes caminhadas: nunca sabes onde terminarás, mas sabes onde começaste.

Não preciso de mais nada.

Eu só quero ler um livro sob o calor de um abrasante sol.

"Porquê, diga-me porquê. Diga-me porque é que quando adormecemos a pensar num dia de sol e num livro sob os seus raios, num banco de jardim, numa esplanada, na relva, acordamos e ainda de olhos fechados escolhemos o que ler e onde ir, e quando finalmente abrimos os olhos e espreitamos à janela

com as persianas sempre abertas para deixar entrar a claridade logo pela aurora

a estratosfera é um manto único de nuvens, em que não se vê réstias de azul e o céu perde a sua altura atmosférica e fica muito baixinho, a roçar as nossas cabeças. E cada rajada de vento o manto liberta-se de si mesmo e chove e as ruas ficam molhadas e as mesas e os bancos de jardim e a relva, tudo fica molhado? Sim, diga-me porquê.

Porque isso é suficiente para me estragar o dia, minha senhora. Isso é como acordar de manhã com uma enxaqueca, não sei se me entende. Gostava de acordar de manhã com uma enxaqueca, minha senhora? Não gostava, não é? Tenho a certeza que não gostava. Então, simplesmente, responda-me: porque é que a Primavera ameaça ficar e quando eu dou por garantida que desta é que é, ela vai-se embora?"