27.2.09

Sip this wine and pass the cup.

O Terras do Pó 2007 da Casa de Ermelinda Freitas, Palmela, é um bom vinho mas precisa de respirar. Está cada vez melhor à medida que vamos esvaziando a garrafa.

26.2.09

Recordação #1: Crime Passional.

Agarrei numa faca e matei-o. Em linhas gerais foi o que aconteceu. Uma faca daquelas que cortam carne assada e rosbife em fatias muito finas. Às fatias podia ter ficado ele, se me apetecesse. Foi a única vez na nossa relação que achei que era eu que tinha o controlo de tudo, a vida dele nas minhas mãos, o sangue dele entre os meus dedos.

Abri a porta e matei-o, sim. Mas não contes a ninguém. Qualquer dia descobrem-no morto, deitado naquela cama onde nunca me deitei, onde sempre se deitou a outra. E vão arranjar suspeitos, vais ver. Nunca vão descobrir que fui eu. A sério.

Usei luvas. Parecia profissional. Abri a porta e matei-o. Com uma faca, já disse que foi com uma faca? Daquelas de cortar rosbife…
E a faca nem era minha, era dele, estava lá na cozinha pronta para cortar a carne para o jantar dele. Se calhar ele ia jantar com a outra. A outra ia jantar a casa dele como tantas vezes acontece.

Sabes que a cozinha fica longe do quarto? Na casa onde ele morou sozinho, o corredor maior separa a cozinha do quarto. Foi esse corredor que eu atravessei, com a faca na mão, em passos pequenos, respirando fundo. Mas não penses que estava nervosa. Não. Estava decidida.
Bati duas vezes – duas? Ou foram três? Já não me lembro e não importa. Bati na porta do quarto e ele estava de toalha enrolada na cintura, sentado na cama, a se olhar ao espelho. Já te tinha dito que ele ia tomar banho quando eu cheguei lá ao apartamento? E ele disse “Vou tomar banho, esperas por mim na sala que a gente já fala.” Foi esta a frase, sem mais nem menos. O que ele me ia dizer, eu não sei. Fui eu que lhe liguei para estar com ele. Sou sempre eu que lhe ligo. Ou ligava. Deu-me agora para pensar se ele estará mesmo morto. Bem, deve estar.

De qualquer maneira, onde é que eu ia? Pois, ele estava sentado na cama a se olhar ao espelho. Sabias que ele era narcisista? Eu não imaginava. Tanta coisa que soube dele e só soube essa no dia da morte dele. A maneira como ele se olhava ao espelho dizia tudo. Bom, eu abri a porta e ele estranhou a minha presença. Notei isso no seu olhar, como se pressentisse alguma coisa. Talvez a sombra da Morte sobre ele, a nuvem do eterno desaparecimento. A faca ia atrás de mim, entre as minhas duas mãos enluvadas. Luvas quentes para um dia de Verão como este, de sol tórrido. Eu preferia ter feito isto num dia de chuva, de relâmpagos, trovões, mas tinha que ser feito hoje. Os carros na rua, as britadeiras da obra não deixaram ouvir o primeiro grito de dor.

Ele gritou de dor nas primeiras três facadas. Depois começou a sangrar e desmaiou quando viu o sangue. Outra coisa que eu não sabia sobre ele. Faz-lhe impressão o sangue. Fazia-lhe. As primeiras três facadas foram no abdómen, do lado esquerdo, devo ter atingido o baço, o estômago. O baço sangra imenso quando é traumatizado porque está cheio de sangue lá dentro. As outras duas facadas também foram no abdómen mas mais abaixo e do lado direito. Entre as primeiras três facadas e as últimas duas eu acordei-o do desmaio. Dei-lhe umas bofetadas na cara, chamei-lhe pelo nome e ele viu-me. Tentou falar, agarrar-me, sabes? A típica cena de filme, arrependimento, dúvida. Mas só na cabeça dele. Na minha só batia uma coisa: acabar o que tinha começado.”Porque é que estás a fazer isto?” E eu sem responder, a mandá-lo calar. E ele a agarrar-me. Estava tão lívido, coitadinho, já nem forças tinha para respirar, quanto mais para parar uma pessoa que faz exercício três vezes por semana – tenho ido ao ginásio nos últimos tempos, devias vir também que aquilo é tão relaxante.

A certa altura só vi sangue à minha volta, nos lençóis, a pingar para o chão, nas almofadas, na toalha, no meu cabelo. Quase que tinha um orgasmo. Foi sexual, eu por cima dele, em domínio, a agarrá-lo e ele com aqueles olhos tristes, a olhar-me, a boca a querer mexer e a não poder, e eu a beijá-lo pela última vez, e ele a esbracejar, a espernear, a língua a querer articular mais uma palavra e a não poder. Pus a cabeça dele no meu colo, numa atitude pós-coito, ele cada vez mais calmo, mais em paz. E eu disse:”Morre, meu amor. Não lutes mais e deixa-te ir. Meu amor.” Ele começou a tossir, tossia, tossia. E eu sempre “Deixa-te ir, amor. Deixa-te ir.” Antes de ele tossir pela última vez olhou para mim e puxou-me pela mão que lhe acariciava os cabelos. E então tossiu pela última vez e eu soube que estava feito.

Já escolheste? A mim não me apetece carne, vou comer peixe assado. Já podes chamar o empregado. Bebemos vinho?

Olha, eu sei que não foi uma morte bonita, mas também há mortes piores. E tu sabes que eu fiz isto por mim. Por ele também. Este amor estava a levar-me à loucura. E foi o momento em que mais próxima me senti dele, um instante visceral. Se ele não morresse, e pára de olhar para mim com essa cara, eu ia enlouquecer apaixonada por ele e ele sem me dar bola, sempre com a outra. Porque ele fingia que gostava dela mas gostava de mim. E eu se o visse, eu se o visse, eu sempre que o via, apaixonava-me de novo. Se eu o visse para sempre, ficava para sempre apaixonada porque gostava demais dele, demais. Demais. Sentia-o junto a mim. E a sua presença estava por todo o lado, pela minha casa, pela minha cama, pela minha música, pelos meus livros, pelos meus perfumes. Eu gostava demais dele e isso tinha que acabar.

E chama o empregado se fazes favor que estou cheia de fome.

Publicado a 27 de Julho de 2004, inspirado numa letra do Adolfo Luxúria Canibal.

Encher chouriços.

À falta de coisas novas por aqui, vou recuperar, em alguns posts, textos que escrevi no saudoso Crime Passional. Vai ser giro ver se houve evolução na forma de escrever nestes últimos cinco anos.

25.2.09

Já que não errar parece impraticável



Esta frase nunca me sai da cabeça.

19.2.09

Acerca do novo canal de notícias da TVI.

Três factos que me fazem questionar a sua credibilidade:

1. A Alexandra Lencastre e o Pedro Granger vão ter cada um o seu programa. A segunda personalidade referida é só das pessoas mais irritantes que algum dia nasceram em Portugal. Quanto à primeira: renascerá, qual Fénix, culta e intelectual, ao melhor estilo Bárbara Guimarães e o seu Páginas Soltas.

2. As publicidades têm a cara do Cristiano Ronaldo, essa inequívoca face da actualidade contemporânea, o rosto da viragem política, a resposta à crise, o líder que Portugal procurava - e se eu não souber da vida dele ao segundo, não sei o que será de mim como ser humano social.

3. É da TVI. Isto significa saber de fenómenos do Entroncamento mal germinam nas hortas e assistir em directo a machadadas entre vizinhos por causa de ramos de cerejeiras.

Cada um tem o que merece.

9.2.09

Mãos quentes, coração frio.

Chupámos sorvetes de citrinos em verde alface que nos pintavam a ponta da língua e nos faziam rir por finalmente parecermos os extraterrestres que realmente éramos. Usava saias pelo joelho, com sapatos de menina, lenços ao pescoço para os ventos da montanha, tu e as tuas camisolas tricotadas, ora flocos de neve, ora losângulos, ora tantos outros motivos geométricos, qual tangram de lã ao peito, ora lisas, sempre cinzentas ou azuis. Passávamos Invernos inteiros em manhãs compridas e tardes de nada, junto à lagoa a ver se gelara, coisa que nunca aconteceu durante uma infância e uma adolescência inteiras (as nossas), perto do rebanho enquanto pastava

lembro-me de tu gostares do cheiro da erva mastigada, um aroma qualquer agridoce que ainda hoje me traz vómitos à boca, e de eu detestar tudo aquilo, aqueles animais molengões na preguiça do mastiga engole regurgita, de invejar os animais por passarem incólumes a tudo, nós a protegê-los e quem nos protegia a nós?

depois no pomar, a ver se brotava qualquer coisa verde, e éramos por isso os primeiros a topar a Primavera quando chegava, graças aos primeiros galhos frescos, porque a Primavera nunca nos chegou em Março, mas sempre em Fevereiro, quando parávamos de comer carne, não por causa da aproximação da Páscoa, apenas porque dos animais que tínhamos, mais nenhum podia morrer, passávamos o resto do mês a castanhas com couves e cenouras e outras raízes que ainda há dias comi num restaurante e logo me veio à cabeça o fim de Fevereiro, o Carnaval, e a hora de almoço ser solarenga e quente junto ao fumeiro e a tarde no pomar, às vezes a subir às árvores ou a fingir que fazíamos piqueniques na terra cheia de musgo.

Este Inverno foi mais frio que o costume e dei por mim a pensar que aí deveria ter gelado finalmente a lagoa e que poderíamos ter cumprido aqueles sonhos de que já me esqueci por completo que sonháramos. Não sei porque desejámos durante um terço da vida que a lagoa gelasse quando agora estamos sós e nos se gelaram os corações - e assim fica explicado porque temos sempre quentes as mãos.

Se não morres do veneno, morrerás do antídoto.

Há alguma forma de parar a hemorragia do nariz?

Carrega na narina, nos ossos próprios do nariz, durante um minuto ou mais. E chama-se a isso epistáxis.

Carrego aqui, não pára.

Há uma forma de fazer parar a hemorragia que é carregando na narina, mas se não carregares não pára.

Dói-me.

O nariz?

Dói-me mais quando carrego do que quando sangra.

Preferes sangrar?

Achas que morro?

Eu é que sei.

Já sangra há imenso tempo.

Carrega na merda da narina, foda-se.

Passa-me um lenço.

...

Não vais carregar?

Pode ser uma hemorragia mas ao menos tenho qualquer coisa minha, ainda que incompleta. E assim não dói, se carregar é que dói.

Something to live for?

And cherish.

...

Somos uma cambada de idiotas.

Só descobriste agora?