21.2.05

Carcavelos

Hoje fui ver o mar, que estava muito azul, sem ondas. Apesar do vento cortante, atrevi-me a passear na areia, por entre namorados e pessoas que namoram com os seus cães. Alguns adolescentes jogavam à bola. Um grupo de surfistas esperava a onda que nunca viria.

Tenho saudades da praia. De dias de céu limpo em que nenhuma nuvem esconde o Sol.

Erasmus II

Sites das faculdades para onde me vou candidatar:

Paris:

Université Pierre et Marie Curie

Université Marne- La Vallée

Université Paris- Sud

O curso é Medicina, para quem não sabe. E o ano é o quarto.

Erasmus

Fez a mala sob o olhar apreensivo da mãe.
"São só nove meses, mãe! Venho cá no Natal, na Páscoa! Prometeste que não ias fazer um drama!"

A mãe ia escolhendo a roupa quente e pondo na mala... "Aquilo lá faz muito frio, querida!"

O pai assobiava de entusiasmo. "Vais ver como vais gostar daquilo, conhecer uma nova cultura, um novo país, novos colegas!"

A irmã dava saltinhos de alegria "Eu vou ter com a mana e vamos as duas à Eurodisney!"

Com a mala cheia e estupidamente pesada, foi para a estação apanhar o comboio até Paris. Esperava-a uma vida nova, sem dúvida. Pelo menos durante aqueles meses.

Afastava-se de quem lhe fazia mal, de quem lhe fazia bem. Tentava descobrir quem era quem na sua vida.

"Às vezes as análises à distância são as que melhores resultados trazem. Estabelecias prioridades, reconhecias o que valia a pena na tua vida, vias quem querias por perto e quem querias ver bem longe. Mas não julgues que eu não vou ter saudades tuas nem que não vais receber uma visita minha! Era o que faltava!" , disse a melhor amiga, com os olhos a brilhar e um sorriso quente.

Foi com o coração pequenino que procurou a sua carruagem, um espaço apertado onde cabia muito desejo de viver.

11.2.05

Pela janela

Uma árvore despida recebe os raios deste Sol estranhamente quente. Ah como sabe bem um dia de Primavera em pleno Inverno.

Interpol

Ultimamente tenho ouvido (praticamente em repeat) uma música dos Interpol, do último álbum (Antics).

Chama-se Narc:

Touch your thighs, I'm the lonely one
Remember that lass, because that was the right one
Oh, all your mysteries are moving in the sun
And show some love and respect
Wanna get some love and respect
Baby you can see that the gazing eye won't lie
Don't give up your lover tonight
Cause it's just you, me and this fire, alright
Let's tend to the engine tonight
Oh

She found a lonely sound
She keeps on waiting for time out there
Oh love, can you love me babe
Love, is this loving babe
Is time turning around

Feast your eyes, I'm the only one
Control me, console me
Cause that's just how it should be done
Oh, all your history's like fire from a busted gun
Now show some love and respect
Don't wanna get a life of regret
But baby you can see that the gazing eye won't lie
Don't give up your lover tonight

She found a lonely sound
She keeps on waiting for time out there
Oh love, can you love me babe
Love, is this loving babe
Is time turning around

He slips into the bedroom
And you know he misses alright
Old names, we'll make sweet
Will sustain us through the night
Inside my bedroom baby
Touch me, oh tonight
Promises, we'll make some
Will reveal our sense of right

You should be in my space
You should be in my life
You should be in my space
You should be in my life
You could be in my space

Ai, ai... Já venho, vou só ouvi-la pela enésima vez...

8.2.05

“It ain’t no use to sit and wonder why, babe” *

Costumas sentar-te no teu sofá minimalista, olhar através da janela enorme à tua frente as árvores do parque, os pardais mudos da cidade e pensar se é com ela que gostavas de ficar para sempre. Não fumas, não costumas beber café ou álcool. Quando te sentas no teu sofá estás com as mãos vazias, antítese da tua mente, tão cheia de ideias, de confusões, de problemas por tirar a limpo.

No leitor de CDs, pões a tocar aquela do Bob Dylan que ela também gosta (ficaram horas a falar das músicas dele, do quanto significam para vocês que nasceram muitos anos depois de ele as ter escrito). Não fumas nem bebes whisky mas de repente apetece-te ter alguma coisa a rolar entre os dedos, ouvir talvez o gelo a bater contra as paredes finas do copo, brincar com a cinza nas bordas do cinzeiro.

Enrolas um charro. Finalmente alguma coisa nas mãos, alguma coisa em que podes pensar para além daquele olhos que nunca mais te saíram da cabeça apesar de não serem teus. Dás uma passa longa, profunda, e o fumo espesso desce até aos pulmões como se por lá já tivesse andado e conhecesse de cor o caminho. Expiras.

Voltas a pensar nela. Um torpor toma conta de ti e até parece que o Bob Dylan está a cantar ao teu pé, a sua voz aproximou-se, os seus versos tornaram-se claros (até aqueles cantados com a boca fechada). Ouves a gargalhada dela, mas está longe, sempre longe, porque para estarem perto precisam de ter bebido uns copos e aí sim, encostam a cabeça um no outro, tocam nos joelhos, na cara, nas mãos, toques suaves que não vos comprometem. Sempre que a vês ris por dentro, está tudo guardado em ti, sem te esforçar sorris, enfrentando o seu rosto irrepreensível, os teus membros tremem, ficas descoordenado, a respiração profunda e mais frequente, o coração na boca, acelerado descompassado arrítmico, e uma alegria vinda de parte incerta que te enebria. Até quando vais conseguir reprimir esse sentimento tão forte é o que eu me pergunto, eu que sou narradora e estou a olhar para ti através de um canudinho de papel.

Perguntas-te se ela sentirá o mesmo e tens a certeza que sim, passas em revista todas as vezes que estiveste com ela e é-te óbvio: o brilho no olhar, o sorriso gigante, a insistência em te dizer pelo menos um olá. Levantas-te depressa “Ela gosta de mim, ela gosta de mim, ela gosta de mim”.

Diriges-te à porta de entrada e páras. “Ela gosta de mim e depois? O que é que eu faço?” Entras em pânico e começas a rir, pareces tontinho, voltas para o teu sofá porque julgas que não há nada a fazer, estás enganado mas não sabes e se calhar vais descobri-lo da pior maneira, dando com os cornos numa parede qualquer, enquanto não o descobrires de qualquer maneira voltas para o teu sofá e sentas-te para pensar nela.

Tentas reconstituir a vossa história-que-ainda-não-o-é: todos os olhares, os primeiros a medo, depois cheios de segurança, de sedução. Todas as conversas, olhos nos olhos, as descobertas do que têm em comum, no fundo é tanta coisa que o mais fácil é dizer que em comum com o outro têm a vida, aos poucos os encontros electrizantes dos cotovelos, dos joelhos, das mãos, cada vez mais intensos, mais sentidos. Não consegues determinar bem quando começou, o que te lembras é de um dia ter dado por ti incapaz de pensar noutra pessoa senão nela.

Anoiteceu na tua janela; dentro de ti estava já de noite, naquela madrugada em que lhe disseste “Eu sei que era contigo que ficava realmente bem”, esforças-te por te lembrar da resposta dela mas não consegues, o vinho apagou essa memória, bem como as duas horas de conversa que ainda tiveram, ficou aquela frase dita assim sem pensar. Sem resposta também.
Querias ser um homem: chegavas-te ao pé dela, davas-lhe um beijo. Já planeaste esse dia: vão jantar fora, beber um copo e acabar a noite naquele mesmo sofá minimalista onde pensas nela, a ouvir a música que ambos gostam. Vais dizer-lhe “Costumava sentar-me aqui e pensar em ti. Todos os dias.” Imagina-la rir e acenar com a cabeça “Eu também, eu também. Penso em ti todos os dias.”Enquanto tiveres a coragem de um rato, a tua única contemplação de amor é esse marasmo em que te encontras, chegares a casa, sentares-te nesse sofá e a amares como se ela estivesse ao teu lado. É mais fácil para ti, mergulhado que estás no comodismo de sempre. Mais fácil e mais doloroso.

*(Bob Dylan, "Don't think twice, it's all right")

O Fotógrafo

Sentia-se sobretudo só. Tentara em vão conviver, conhecer, conversar. Vivera sozinho, deixando-se levar pela exaltação do seu próprio ego, reconhecendo dentro de si múltiplos cidadãos do mundo, como ele, com quem falava, discutia, ria. Mas fazia-lhe falta o contacto físico, as trocas de olhares, o sorriso. Ele já não sorria há muito, muito tempo. Não tinha ninguém a quem mostrar o sorriso pálido e disforme da fotografia do seu B.I..
O seu quarto tinha duas janelas: uma para as escadas do prédio onde morava, que partilhava com o senhorio, dois ou três estudantes universitários, uma cabeleireira, três romenas de profissão incerta, um pai e o seu filho bebé, cuja mãe partira para França com o patrão; a outra janela mostrava-lhe a rua: movimentada durante o dia, cheia de carros, velhinhas que moravam nos bairros em redor e iam ou voltavam do mercado, com sacos pretos ou cestas de ráfia, estudantes de uma escola mesmo do outro lado da rua, senhoras que visitavam as lojas caras da Avenida, homens de fato e gravata e pasta de cabedal num lufa-lufa de reuniões, à noite a rua era vazia de valores e de preconceitos, putas e pernas à mostra, cinto de ligas a descoberto pela saia de plástico-a-imitar-cabedal preto, meias de rede, decotes pronunciados pelo umbigo, maquilhagem esborratada, lábios escarlate. Os mesmos homens que antes passeavam as suas papeladas dentro de malinhas de pele, em fatos de marca comprados pelas suas dedicadas esposas, exibiam agora carros que custavam o mesmo que apartamentos e nos quais faziam sinal aos porteiros dos clubes nocturnos, cujos néons começavam a brilhar por volta da hora do jantar.
Ao jantar ele comia sopa. Tirava um tacho do armário de madeira do corredor, ligava uma boca do fogão com um fósforo, derramava o conteúdo verde-lama de uma tigela para dentro do tacho (quem lhe fazia a sopa era a mulher do senhorio) e comia a sopa acompanhada de um papo-seco bem-cozido com manteiga, que molhava na sopa. Às vezes ligava o rádio e ouvia o noticiário. Não gostava de música. O jantar era rápido e, depois disso, ele fechava-se no quarto, pensava no corpo da romena que o tinha acabado de cumprimentar “Qualquer dia ainda a fotografo…”, agarrava-se a um livro da sua enorme estante e punha-se a ler. Lia, lia, lia até que os olhos lhe doessem, os dedos ficassem cansados de virar páginas, os braços extenuados de segurar o peso do livro no ar. Quando parava de ler e adormecia, já não se viam nem homens nem porteiros nem putas na rua. À hora a que ele adormecia, a rua ficava deserta, a não ser um ou outro toxicodependente (geralmente o mesmo que de manhã era arrumador de carros).

Durante o dia, das nove às cinco, ele era um respeitável funcionário da Repartição de Finanças, sisudo é certo, mas muito eficaz e trabalhador. E quando os empresários o reconheciam, passavam-lhe para a mão cheques com quantias exorbitantes para ele se “enganar” num ou outro cálculo, para fechar os olhos a esta ou aquela factura. Nunca aceitou nenhum. Depois de sair da repartição, comia uma bola de Berlim com creme na Pastelaria Almerindo, aquecia a alma com um café com bagaço e fazia, a pé, o trajecto até casa, onde ia buscar a sua máquina.

Apanhava o autocarro até ao rio (no Verão ia ao mar, mas no Inverno os dias são tão curtos!) e tirava fotografias aos cacilheiros, às duas pontes, às aves, às pessoas apressadas que o atropelavam com aqueles saltos agulha e carteiras de pele rígidas. Cruzava-se muito pouco com homens. As pessoas sorriam, achavam graça, mas não sabiam que cada fotografia que ele tira é arrumada num Álbum, com data, e que álbuns assim já ele tem uns cem, só com relatos momentâneos do Rio e de quem o respira.

Algures no tempo perdeu a voz. Ou a capacidade de conversar com os outros. Deixou de sentir necessidade para isso. Expressa-se através dos álbuns que mantém escondidos no quarto onde ninguém entra e por isso continua só. Extremamente só.


Mudanças

Arrumou os sapatos em caixas de cartão. Cada par numa caixa, com uma inscrição por fora “saltos altos do casamento da Milena” (pumps, diz a Vogue e ela acena que sim) ou “Havaianas azuis”. Cada caixa vazia que agarrava, pensava em si, em como estava seca por dentro, vazia como uma caixa, seca como um cartão.
Agarrou em lençóis de flanela, com os quais protegeu os vestidos de gala, os fatos das reuniões nos bancos e nas seguradoras (tailleurs, diz a Vogue e ela diz “claro”), os sobretudos (trench coats, diz a Vogue e ela acredita), os casacos de cabedal (a Vogue também diz de outra maneira, mas isso ela já não se lembra, lembra-se sim, bombers de cabedal, assim é que é).

Sorri com as parvoíces que as amigas insistem que ela saiba. Palavras demodé, sentimentos demodé, vidas demodé se não forem frenéticas e frívolas. Pessoas in, pessoas out.

Agarra em tudo o que arrumou e põe em caixas de cartão maiores, como matrioskas, do mínimo ao máximo. Olha bem para aquele jogo, o grande que engole o pequeno, o lobo e o capuchinho, e apercebe-se que, para onde ela vai, não precisa de nada daquilo. Não vai ter galas nem reuniões nem festas de casamento.

Risca a inscrição do caixote “roupa” e escreve “coisas para dar”.

Levanta-se subitamente e abre a gaveta dos relógios, desde o primeiro que recebeu ao último, modelos antigos e novos, caros e baratos, nas suas caixas respectivas. Tudo na vida está encaixotado, até mesmo as pessoas, empacotadas com a legenda “por viver”.

Do quarto está tudo escolhido, acaba por não levar nada porque sabe que para onde vai tem tudo o que precisa.

Vai para a sala. Da janela grande, aquela que banha a sala de uma luz irrepreensível, vê-se o Tejo, o Cristo Rei, a ponte. Há muito tempo que ela não via esta paisagem. No dia em que comprou este apartamento, lembra-se de ter sido o factor de desempate com o rival directo. “Olha a vista, Fernando!” A vista tornou-se parte da paisagem, como um bibelot oferecido que nunca se soube muito bem onde pôr.

Os jarros cheios de flores, gerberas, cravos, rosas, cheios de cores.

Custa-lhe deixar os cêdês, que compra desde o primeiro ano da faculdade (há muito tempo: há quanto?), mas também os guarda dentro de caixotes. Detém-se num, coloca no leitor e ouve aquela canção; apetece-lhe chorar mas não o faz. Continua.

Os livros. Vai buscar a primeira mala e enche-a com todos eles; não é capaz de os deixar para trás. Vai buscar a segunda mala e também a enche até cá cima. Põe, a custo, as duas malas ao pé da porta de saída.

Para onde ela telefonou, disseram-lhe expressamente “Pode trazer até três malas”, como se o Céu aceitasse malas. Mais uma com o básico e já perfez o máximo permitido.
Escova de dentes, gel de banho, creme para a cara, corta-unhas, pijamas, pantufas, roupa interior de algodão (a de renda, cetim e afins já está dentro de algum dos caixotes), roupão, toalhas e lençóis para não incomodar ninguém com pedidos estúpidos, queria levar o secador com que sempre secou as madeixas longas do seu cabelo, a máscara com que as nutriu toda a vida, o creme de brushing que lhe custou uma fortuna, as escovas: a redonda, a de dentes de madeira, a de crina. Olha-se ao espelho da casa de banho, que sempre a desfavoreceu. O cabelo cai sobre as costas como um fardo pesado, parece querer engoli-la. Agarra numa tesoura e corta as pontas. Acha pouco. Corta mais.

Quando dá por si, está sem madeixas, sem nada. O cabelo reduzido a uma camada de fios desagradavelmente espetados e ásperos.

Vai buscar fotografias aos álbuns: do João, do Fernando, da mãe, do irmão, do pai, dos sobrinhos, cada vez maiores, afinal sempre ficou para tia, como agouravam as tias velhas também elas deixadas para trás, da Milena, da Ester, do Marco, do tio, da prima Susana, dos filhos do primo Luís, crianças ainda com barrigas roliças e lábios deformados pela chucha, mas sem pretensões a nada. Guarda-as na mala (na terceira). Fecha-a. Lembra-se da cunhada. Abre o álbum, escolhe uma onde ela apareça, abre a mala, coloca lá dentro a fotografia, fecha a mala. Fecha o álbum. Ainda o folheia, mas acaba mesmo por fechá-lo.

Desliga o telemóvel. Antes de arrancar o fio do telefone fixo, faz uma chamada para os táxis, a praça é ali mesmo, em dois minutos estão cá para a virem buscar. Arrasta as malas para o elevador, desce com elas, ou melhor, de cócoras em cima delas, porque o espaço é pouco e ela e as três malas não cabem naquele cubículo exíguo.

Enquanto espera o táxi (“Hoje está a demorar”), encontra-se naquela rua, naquele momento, olha-se nos seus olhos, quarenta anos e afinal nenhum plano, nada que a prenda a isto que toca com os pés e as mãos. Os dois minutos afinal duraram realmente dois minutos, o táxi chegou, ela é que deixou o relógio em casa, agora já tem tempo para tudo mas não sabe para quê, e também a sua vida passada em revista não tem grandes épocas onde ela possa parar e demorar um pouco mais, mirando-se e remirando-se através da brecha da memória.

“É para Coimbra.”

O taxista olha-a espantado mas segue viagem. Em duas horas, vê a Torre da Universidade, o rio Mondego, as pessoas mais afáveis (se calhar mais demodé, e ri por dentro com este pensamento). Não diz para onde vai, mas aponta caminhos. De repente, a paragem, o pagamento, as malas fora do porta-bagagem.

Bate numa porta castanha com o punho fechado. Não passa ninguém na rua. Volta a bater. A porta abre-se.

Uma voz. “Gabriela?”

Ela não responde, contém a respiração, de repente deu-lhe para hiperventilar, um misto de curiosidade e medo, de alegria e de profunda melancolia.

“Estávamos à sua espera, mas compreendemos a sua demora. O que está prestes a fazer exige muita força. Chegámos a pensar que teria desistido.”
Não responde. As três malas sozinhas no passeio, o conteúdo de cada uma escolhido a dedo.

“Trouxe malas, Gabriela?”

“Não.”

As malas abandonadas, deixadas ao acaso. A porta que se fecha atrás dela e um corredor húmido, pouco iluminado.

“Eu sou a irmã Isabel e vou levá-la a conhecer a Madre Superiora. Vamos?”

1.2.05

E se...

Eu fizesse as malas e começasse do zero noutro sítio (from scratch, dizem nos filmes)? Punha umas camisolas de lã (se calhar uma camisola de caxemira para nunca mais voltar a sentir frio na vida), umas t-shirts, uns casacões e lá ia eu de abalada para outra vida.

Como se mudar de vida fosse assim tão fácil.

(Já agora gostava de saber porque é que eu ando sempre tão farta de mim. Ou da minha vida.)

Se eu fizesse isso, ia ter que fazer novos amigos e a questão não é não gostar dos meus amigos actuais mas sim ser preconceituosa acerca de todos eles. E o preconceito de que falo não é aquele prejorativo. Por exemplo, se é para tomar café ligo àquele, se é para falar de roupa ligo àquela. Isso já é um preconceito, não é? Eu gosto muito dos meus amigos, em especial de um pequeno grupo de mulheres que nem se dão lá grande coisa umas com as outras.

Por exemplo, gostava de mudar isso.
Gostava de poder encenar o Sex and the City in Lisbon e ter mais três amigas com quem fosse almoçar, às festas, às compras, à livraria. Infelizmente, como as minhas amigas são diferentes uma das outras, já sei o que é que posso fazer com cada uma e nunca nos juntámos até porque elas rapidamente ficariam fartas umas das outras (é que não têm mesmo nada a ver, garanto-vos).

Noutra cidade arranjava um grupo de amigas e íamos para a boulangerie (não sei porquê mas nisto de mudar de cidade ocorre-me sempre Paris), comíamos umas baguetes a ver os homens que passavam, havia de ser divertido.

Arranjava uma discoteca pequenina onde pudesse dançar, dançar, dançar (lá está: umas amigas que gostassem de dançar o que eu gosto também ajudava), donde só saísse de madrugada a tempo de beber um chocolate quente antes de ir para a cama, enquanto o Sol nascia algures entre águas-furtadas e árvores nuas de Outono.

Na outra cidade (continua-me a ocorrer: Paris, Paris, Paris) eu iria à mercearia em vez de supermercados, onde as compras se guardavam em sacos de papel e um dia o meu saco ia estar muito pesado e algures numa rua Belle Époque rasgava-se e vinha alguém me ajudar a recolher as compras. Alguém a quem eu sorrisse, olhasse nos olhos, fosse tomar um café (nesta Lisboa enorme deviam usar sacos de papel porque, para além de ser bom para o ambiente, por serem recicláveis, ia haver sempre a hipótese de se criar um clima de romance entre duas pessoas que não se conhecem).

Nesta cidade, e apesar de nunca tentar mudar nada e viver num comodismo desmesurado, vou tentando ser feliz mesmo sem refeições estrangeirísticas. Venha a meia de leite e a carcaça com queijo, em vez do capuccino e da baguette. Também é divertido assim.

Talvez um dia faça as malas. Por enquanto, contento-me em tentar acabar o curso, que já muitas alegrias (e decepções também) me vai trazendo.

(Porque é que eu não consigo fazer posts curtos?)

Era uma vez

Um Professor de Imunologia que aparece na televisão mas é uma nódoa pedagogicamente. Aulas teóricas onde não se aprofunda nada para depois no exame ser preciso saber todas as moléculas (e mais algumas) sinalizadoras de todos os processos. Aulas práticas que são teóricas com a diferença de que temos falta (de presença, claro, ninguém sente falta de aulas).

Era uma vez uma aluna que estudou a matéria para um exame e quando lá chegou deparou-se com uma série de caqueiradas (nem sei se a palavra existe, mas entendam-na como "conjunto de cacos") que não lembram nem ao Rei XV. O nome dele é mesmo esse, Quinze. Acho que os pais não gostavam muito dele e como ele era o décimo quinto filho deram-lhe esse nome (ou número). Chegou a rei porque morreram os irmãos todos, uns na guerra, umas a dar à luz, outros com peste, alguns com tuberculose. E houve um irmão, muito dado ao mulherio da época, que só não morreu de DST porque na altura isso ainda não havia. Esse não morreu, renunciou ao trono para não precisar de casar e poder continuar a sua vida de gigolo da corte do Rei XV.

Acho que me desviei do assunto.
Enfim, essa aluna estudou muito e agora tem de esperar até amanhã para saber se acertou nas caqueiradas (este termo ainda vai entrar na moda) e até mesmo nas perguntas que sabia.