Costumas sentar-te no teu sofá minimalista, olhar através da janela enorme à tua frente as árvores do parque, os pardais mudos da cidade e pensar se é com ela que gostavas de ficar para sempre. Não fumas, não costumas beber café ou álcool. Quando te sentas no teu sofá estás com as mãos vazias, antítese da tua mente, tão cheia de ideias, de confusões, de problemas por tirar a limpo.
No leitor de CDs, pões a tocar aquela do Bob Dylan que ela também gosta (ficaram horas a falar das músicas dele, do quanto significam para vocês que nasceram muitos anos depois de ele as ter escrito). Não fumas nem bebes whisky mas de repente apetece-te ter alguma coisa a rolar entre os dedos, ouvir talvez o gelo a bater contra as paredes finas do copo, brincar com a cinza nas bordas do cinzeiro.
Enrolas um charro. Finalmente alguma coisa nas mãos, alguma coisa em que podes pensar para além daquele olhos que nunca mais te saíram da cabeça apesar de não serem teus. Dás uma passa longa, profunda, e o fumo espesso desce até aos pulmões como se por lá já tivesse andado e conhecesse de cor o caminho. Expiras.
Voltas a pensar nela. Um torpor toma conta de ti e até parece que o Bob Dylan está a cantar ao teu pé, a sua voz aproximou-se, os seus versos tornaram-se claros (até aqueles cantados com a boca fechada). Ouves a gargalhada dela, mas está longe, sempre longe, porque para estarem perto precisam de ter bebido uns copos e aí sim, encostam a cabeça um no outro, tocam nos joelhos, na cara, nas mãos, toques suaves que não vos comprometem. Sempre que a vês ris por dentro, está tudo guardado em ti, sem te esforçar sorris, enfrentando o seu rosto irrepreensível, os teus membros tremem, ficas descoordenado, a respiração profunda e mais frequente, o coração na boca, acelerado descompassado arrítmico, e uma alegria vinda de parte incerta que te enebria. Até quando vais conseguir reprimir esse sentimento tão forte é o que eu me pergunto, eu que sou narradora e estou a olhar para ti através de um canudinho de papel.
Perguntas-te se ela sentirá o mesmo e tens a certeza que sim, passas em revista todas as vezes que estiveste com ela e é-te óbvio: o brilho no olhar, o sorriso gigante, a insistência em te dizer pelo menos um olá. Levantas-te depressa “Ela gosta de mim, ela gosta de mim, ela gosta de mim”.
Diriges-te à porta de entrada e páras. “Ela gosta de mim e depois? O que é que eu faço?” Entras em pânico e começas a rir, pareces tontinho, voltas para o teu sofá porque julgas que não há nada a fazer, estás enganado mas não sabes e se calhar vais descobri-lo da pior maneira, dando com os cornos numa parede qualquer, enquanto não o descobrires de qualquer maneira voltas para o teu sofá e sentas-te para pensar nela.
Tentas reconstituir a vossa história-que-ainda-não-o-é: todos os olhares, os primeiros a medo, depois cheios de segurança, de sedução. Todas as conversas, olhos nos olhos, as descobertas do que têm em comum, no fundo é tanta coisa que o mais fácil é dizer que em comum com o outro têm a vida, aos poucos os encontros electrizantes dos cotovelos, dos joelhos, das mãos, cada vez mais intensos, mais sentidos. Não consegues determinar bem quando começou, o que te lembras é de um dia ter dado por ti incapaz de pensar noutra pessoa senão nela.
Anoiteceu na tua janela; dentro de ti estava já de noite, naquela madrugada em que lhe disseste “Eu sei que era contigo que ficava realmente bem”, esforças-te por te lembrar da resposta dela mas não consegues, o vinho apagou essa memória, bem como as duas horas de conversa que ainda tiveram, ficou aquela frase dita assim sem pensar. Sem resposta também.
Querias ser um homem: chegavas-te ao pé dela, davas-lhe um beijo. Já planeaste esse dia: vão jantar fora, beber um copo e acabar a noite naquele mesmo sofá minimalista onde pensas nela, a ouvir a música que ambos gostam. Vais dizer-lhe “Costumava sentar-me aqui e pensar em ti. Todos os dias.” Imagina-la rir e acenar com a cabeça “Eu também, eu também. Penso em ti todos os dias.”Enquanto tiveres a coragem de um rato, a tua única contemplação de amor é esse marasmo em que te encontras, chegares a casa, sentares-te nesse sofá e a amares como se ela estivesse ao teu lado. É mais fácil para ti, mergulhado que estás no comodismo de sempre. Mais fácil e mais doloroso.
*(Bob Dylan, "Don't think twice, it's all right")
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