29.11.05

Fado

A porta foi fechada com estrondo, a madeira corcomida vibrou na pancada, o trinco acusou o passar do tempo e rangeu ao fechar. Mesmo na soleira da porta, encostado, estava um bêbedo, um homem nos seus setentas, bem-vestido apesar de sujo, que ainda que aparentemente inconsciente, resmungava "Viva a Junta geral!". Sacudiu-o com um pé "Vá para casa, senhor!" e ele virou-se para o outro lado e adormeceu profundamente.

Chovia.

Tirou o guarda-chuva da mala e abriu-o sobre a cabeça, mas uma rajada de vento virou-o ao contrário. "Merda." Deitou o guarda-chuva fora e foi assim, com um pequeno salto, que desceu para a rua, evitando o passeio por onde a água escorria como se tratasse de uma levada. Desceu a calçada em passos apressados, em certas pedras da estrada os sapatos não tinham aderência e escorregavam. Para chegar à igreja tinha ainda que subir uma calçada idêntica, mas agora as águas da bátega vinham estrada a baixo e não pôde evitar molhar os sapatos, os pés, a alma. "Merda."

Quando chegou, ela ainda não estava. As mãos tremiam, reconhecia a importância daquela conversa nesse dia, em que chovia, em que o bêbedo estava à porta da sua casa, em que ela perdera o eléctrico e teve que vir a pé. Afogueada, sem saber se do calor, se da ansiedade, encostou-se a uma parede abrigada de S. Pedro por um longo telhado. Respirou fundo.

Aos poucos, enquanto a chuva acalmava, os rostos e as esquinas tornavam-se perceptíveis. Pôde afastar-se da parede, pintada de cal, que lhe deixara o casaco com vestígios brancos, e ir para perto da estátua onde combinara.

Ela não chegava. Sentou-se de esplanada, pediu o inevitável café, acendeu o inevitável cigarro. Ao longe, sim, agora mais definida, uma guitarra portuguesa soava triste. Os seus lábios afastaram-se, deixaram escapar um sorriso. Sempre fora tão portuguesa, admitia, assumia a custo isso, mesmo com a sua vontade enorme de viajar, de ficar por lá, de emigrar. Gostava dos palcos pequenos das tascas onde se soltava a amargura. O fado sempre fôra o seu género de música preferido. E a sua vida acabava sempre por ser escrita de acordo com o que ouvia.

O sol vinha agora para secar as ruas e os corpos e ela, ainda sentada, dispôs-se a recebê-lo e virou-se com a cara para o sul, de onde vinham os raios com mais calor.

Ela não chegava. E ela, sentada, não queria esperar mais, então desceu. Novamente afogueada, descendo depressa, sem apreciar os edíficios que já conhecia de cor, o coração começou a bater acelerado e ela levou a palma da mão ao peito, com dor. Abrandou. Viu a luz ser reflectida dos muros, das casas e dos vidros, iluminava a rua sem vergonha de si mesmo, o sol, e aquecia-a, então tirou o sobretudo. Com o sobretudo na mão, continuou a caminhada e foi envolvida pelo Terreiro do Paço, atravessou a vastidão da Praça fria sentindo-se muito pequena, muito só, como uma semente perdida num celeiro imenso. As pessoas passavam por ela sem se perguntarem "Ela sofre?". Ela também passava por elas todas, muito auto-comiserativa, sem se ralar com a dor de cada um dos que se cruzavam com ela.

Tinha mais com que se preocupar, agora que tudo isto lhe estava a acontecer. O seu mundo desabava sobre si mesmo, que podia ela fazer senão angustiar-se consigo? Nenhum fado tinha sido escrito com pena do vizinho, era sempre de si próprio. E ela, ela assumia-o, era portuguesa e vivia como os poemas escritos ao sabor do vinho e da guitarra.

O Tejo resplandecia de claridade, via-se, lá para os lados do Ginjal, nascer um arco-íris, que parecia mais uma ponte sobre o rio, as sete cores, amarelo, laranja, vermelho, roxo, anil, azul, verde. Sentou-se no muro sobre o cais, olhava em volta e eram só homens da construção civil, tudo em obras, tudo em obras, tudo em obras.

Inspirou profundamente e deixou secar a alma molhada, o olhar fixado na outra margem, no vai-vem dos cacilheiros. Quando não tinha mais lágrimas, muito tempo depois, já era de noite, e as luzes de Natal estavam acesas atrás de si, desenhando rumos de alegria. Sentiu saudade da vida que antes tinha, no entanto sabendo que o que desejava realmente era um corpo que não se importasse de partilhar com ela o seu fado, que desejasse secar as suas lágrimas. Lembrou-se, numa tentativa bem sucedida de se animar, que não há muito tempo tinha sabido ser feliz, que tinha sabido escolher os destinatários das suas palavras, as mãos em que entrelaçava as suas, os olhos em que lia os pensamentos. Sorriu e levantou-se.

Saudade da sua família, de repente, pesando mais do que tudo, mais do que a árvore gigante que se erguia perante a cidade estupefacta, os carros, as gentes perfilando-se, eternas filas de espera, toda a vida à espera para que ela fosse sempre bem-acolhida, mas afinal sempre quiseram ultrapassá-la em tudo, "A inveja mata os sentimentos nobres que nunca chegaram a nascer".

Ela também, amizades condenadas logo à partida por estarem envenenadas de ciúmes e falsas honestidades.

Pôs as mãos nos bolsos do sobretudo, que entretanto vestira, e deixou-se ir na corrente de gente que andava sob as estrelas, sob as mangueiras de luz desenhando no ar objectos e cenas de uma felicidade imensa.

"O que não nos mata, torna-nos mais fortes", e ela ali estava viva, mais forte. Subiu até casa sem se cansar com a inclinação e a velocidade. Comprou uma dúzia de castanhas e pôs-se à janela, vendo o fim do rio ao longe, assistindo ao suceder da noite.

Já a cidade recolhia para finalmente adormecer, quando decidiu fechar a janela, sacudindo para o beiral restos das cascas. Ao longe, ela podia jurar, ouvia-se uma guitarra portuguesa que soava triste, embalando, cansada, as estrelas, as casas, o luar.

22.11.05

Objectos detestáveis (apesar da sua utilidade)

Piaçabas. Detesto o nome que lhes deram, o fim para que se destinam, acho-os feios, ferem a vista em qualquer casa de banho.
Apesar de tudo, o mundo anda a precisar de um piaçaba.

21.11.05

TINDERSTICKS (Can we start again?)

So many times
I said that I love them
Looking over my shoulder at the door
So many times
I can't live without her
The wheel kept turning round
My feeling's changed
I went my own way
What can I say
To make you stay?

(...)

I did you wrong
But I'm sorry now
And I'll show you how

(...)

Can we start again?
So many times I said that I loved them
I'm ready now
But I'm ready now
Can we start again?
So many times
I can't live without her
The ache was more than I could bear
It's turning round

But in my dreams Can we start again?
They smother all over me I'm ready now
And I'm trying to explain Can we start again?

Nota para mim mesma

Comprar o Grace do Jeff Buckley.

14.11.05

Footprints

Se julgas que podemos ser um só, deixo as minhas marcas nos solos por onde passo para que as sigas. Não posso esperar por ti. Deixei-me ficar tempo demais e agora? agora estou livre e caminho sem saber onde acaba este trilho, dou passos pequenos na certeza do fim, cravo as minhas pegadas na lama, podes vê-las sob a tua sombra, vem, despacha-te. Quero partilhar o próximo túnel contigo, proteger-me da tempestade envolta em ti, cheia de ti, quero que escrevas comigo as páginas em branco que aí vêm. Podes vir, vem, porque estamos os dois sós com vontade de partilhar. Pressinto o teu medo, o teu zelo em arriscar tanto, mas nós não vamos para longe, podes voltar quando quiseres, sem laços nem mágoas, vem, tens tanta vida por usar, por gastar, o teu corpo vibra dentro de uma máscara fria e eu ofereço-te todos os meus pensamentos, toma, sem segredos a partir de agora, vem. Se te for suficiente isto, então segue-me, prometo que quando chegar ao lago, sento-me na margem, sem chorar, abraço as pernas para aquecer o resto do corpo e espero por ti. Vem porque o frio e a chuva teimam em não ir embora, vem porque está escuro e os dias são curtos e por onde eu vou não há luz. Vem.

Hoje, Domingo, equilibra-se a alma com:

12.11.05

A não perder

Em jeito de nota de rodapé com honras de letras gordas na primeira página do jornal, venho aconselhar o concerto de Devendra Banhart, amanhã à noite na Aula Magna.

E sei do que vos falo. Vi o senhor em concerto no Sudoeste, no palco Planeta Sudoeste.

Logo que entraram em palco, senti-me transportada para Woodstock, pelo visual, pela boa onda, pelo ar que se respirava. Não é preciso ser-se hippie ou fumar erva para compreender a sua música, feita de simplicidade e boas letras. É só exigido que nos deixemos levar. Que fechemos os olhos e respiremos profundamente, deixando cada acorde e cada palavra disseminar-se por nós e logo a tranquilidade e o prazer encarregar-se-ão do resto. Quando acabou, quem lá estava saíu diferente, ninguém o pode negar, preenchidos por uma mensagem de paz que cada um interpretou à sua maneira.

E quando ele chamou um songwriter ao acaso do público para tocar uma música, que momento tão humilde e generoso!

Este concerto marcou-me muito, mais não seja por o ter visto totalmente sozinha (bom, não tanto sozinha, mas sim acompanhada por um copo de plástico constantemente cheio de imperial).

Enfim, amanhã, dia 12, ele volta para estar connosco. É um aviso.

10.11.05

Melhor comentário 2005

Prémio a ser atribuído com alguma antecipação porque o vencedor desta categoria teve uma ideia que eu adorava ter tido.

Verão :D, este prémio é para si!!!

"Quando eu cheguei parecias encantada. Não te lembras das idas à praia, das saidas agradaveis nas minhas noites, das férias.
Como pudeste fazer isto?!
Prometeste fieldade, falaste em comprar aquecedores para as minhas ausências, em continuar a usar cores vivas, em continuar a comer gelados, até disseste que me ias visitar ao Brasil...Como pudeste fazer isto?!?!
Aparece um palhaço qualquer que faz cair as Folhas(das arvores e da velhice), molha tudo, traz trabalho...
Castanhas! ah,grande coisa! comida de porcos é o que é!
Já te esqueceste das saladas frescas?
Como pudeste fazer isto?!!!!!!!"

(Julgo que sei quem és mas pelo sim pelo não, reserva-se aqui o anonimato.)

dEUS


Mesmo sabendo que
não gostavas, empenhei meu anel de rubi para te levar ao concerto que havia no Rivoli
corro o risco de não almoçar nem jantar durante parte do mês de Novembro, não consegui resistir. Comprei.

E em Dezembro lá estarei na Aula Magna, a aplaudi-los.

"Here comes the sun smiling, how long have you been blue?
There'd ever be a time for us to recapture all the time we lose."

9.11.05

Um "AI PODE"

É o que eu quero receber nos anos.

(ou um Zen da Creative).

P.S. Se alguém tiver sugestões acerca de coisos-que-tocam-mp3-e-já-agora-rádio, pode deixar um comentário se faz favor que eu não percebo nada disso.

Isto não me sai da cabeça, mais vale pôr aqui para ver se ajuda...

My love life

Come on to my house
Come on and do something new.

I know you love one person so why can't you love two?

Give a little something
Give a little something
To my love life
To my love life
My love life...

I know you love one person so why can't you love two?

Give a little something
Give a little something
To my love life
To my love life
My love life...

I know you love one person so why don't you love two?
Love two...

Oh give a... Love.
I know you love.

Morrissey

7.11.05

Mensagem para o Outono

O meu corpo sentiu a tua presença hoje porque finalmente pude respirar fundo e absorver o ar frio transpirado pelos dias cada vez mais curtos. O amanhecer às 7 da manhã foi recebido com um arrepio: apesar da luz brilhante que aquecia o céu azul, o sol arrefeceu a casa do meu amigo, arrefecendo também a conversa inflamada sobre orgulho e justiça e moral(idade).

Chegaste há tempo mas só agora te aceitei, Outono, por isso faz-me companhia nestes dias breves mas sós que se avizinham. Tu e este cd fantástico com todas as músicas publicadas pelos Belle & Sebastian (presente mais que generoso de um amigo meu). E agora que já nos entendemos, Outono, posso começar a contar os dias para o meu aniversário, fazer listas de convidados para uma festa (nem que seja para actualizar mentalmente quem são os meus amigos), pensar em presentes que gostava de receber e, sobretudo, começar a tortura (que dura até ao fim do ano) dos balanços: o que é que eu fiz, o que estou a fazer, o que quero mudar, o que mudei, o que consegui, o que está por alcançar. Talvez também chore quando precisar mas a verdade é que a percepção que tenho de mim agora, é, estranhamente, de tranquilidade.

E comer castanhas.

Já agora, achas que o orgulho pessoal deve ser impedimento para viver a vida e aproveitá-la ao máximo?

5.11.05

Praia III

A praia só e calma
Feita de choros breves
E frias madrugadas
É o abrigo dos seres
Feitos, eles também,
De lamentos, sonhos
E gargalhadas.

1.11.05

A insensibilidade dos Homens

Porque reside na insensibilidade dos Homens a insegurança dos angustiados, porque quando olhava o Tejo no comboio, evitando chorar, descobri que podia ilibar-me da culpa de te desejar, porque é o passado de um povo que o sentencia e o passado do meu cruzou-se com reis e rainhas e amores de perdição.

Com a insensibilidade dos Homens revelou-se-me a destreza do Engano, ele próprio um engano de si mesmo por poder ser a verdade camuflada em mais enganos e lapsos voluntários. Eu própria, cansada de ti, pensava eu, em engano, afinal os meus vazios estão preenchidos pela plenitude que me trazes.

Desde a insensibilidade dos Homens que cada passo que dou parece pesar o decorrer dos anos, a dor dos vivos, a ausência dos mortos.