8.2.05

O Fotógrafo

Sentia-se sobretudo só. Tentara em vão conviver, conhecer, conversar. Vivera sozinho, deixando-se levar pela exaltação do seu próprio ego, reconhecendo dentro de si múltiplos cidadãos do mundo, como ele, com quem falava, discutia, ria. Mas fazia-lhe falta o contacto físico, as trocas de olhares, o sorriso. Ele já não sorria há muito, muito tempo. Não tinha ninguém a quem mostrar o sorriso pálido e disforme da fotografia do seu B.I..
O seu quarto tinha duas janelas: uma para as escadas do prédio onde morava, que partilhava com o senhorio, dois ou três estudantes universitários, uma cabeleireira, três romenas de profissão incerta, um pai e o seu filho bebé, cuja mãe partira para França com o patrão; a outra janela mostrava-lhe a rua: movimentada durante o dia, cheia de carros, velhinhas que moravam nos bairros em redor e iam ou voltavam do mercado, com sacos pretos ou cestas de ráfia, estudantes de uma escola mesmo do outro lado da rua, senhoras que visitavam as lojas caras da Avenida, homens de fato e gravata e pasta de cabedal num lufa-lufa de reuniões, à noite a rua era vazia de valores e de preconceitos, putas e pernas à mostra, cinto de ligas a descoberto pela saia de plástico-a-imitar-cabedal preto, meias de rede, decotes pronunciados pelo umbigo, maquilhagem esborratada, lábios escarlate. Os mesmos homens que antes passeavam as suas papeladas dentro de malinhas de pele, em fatos de marca comprados pelas suas dedicadas esposas, exibiam agora carros que custavam o mesmo que apartamentos e nos quais faziam sinal aos porteiros dos clubes nocturnos, cujos néons começavam a brilhar por volta da hora do jantar.
Ao jantar ele comia sopa. Tirava um tacho do armário de madeira do corredor, ligava uma boca do fogão com um fósforo, derramava o conteúdo verde-lama de uma tigela para dentro do tacho (quem lhe fazia a sopa era a mulher do senhorio) e comia a sopa acompanhada de um papo-seco bem-cozido com manteiga, que molhava na sopa. Às vezes ligava o rádio e ouvia o noticiário. Não gostava de música. O jantar era rápido e, depois disso, ele fechava-se no quarto, pensava no corpo da romena que o tinha acabado de cumprimentar “Qualquer dia ainda a fotografo…”, agarrava-se a um livro da sua enorme estante e punha-se a ler. Lia, lia, lia até que os olhos lhe doessem, os dedos ficassem cansados de virar páginas, os braços extenuados de segurar o peso do livro no ar. Quando parava de ler e adormecia, já não se viam nem homens nem porteiros nem putas na rua. À hora a que ele adormecia, a rua ficava deserta, a não ser um ou outro toxicodependente (geralmente o mesmo que de manhã era arrumador de carros).

Durante o dia, das nove às cinco, ele era um respeitável funcionário da Repartição de Finanças, sisudo é certo, mas muito eficaz e trabalhador. E quando os empresários o reconheciam, passavam-lhe para a mão cheques com quantias exorbitantes para ele se “enganar” num ou outro cálculo, para fechar os olhos a esta ou aquela factura. Nunca aceitou nenhum. Depois de sair da repartição, comia uma bola de Berlim com creme na Pastelaria Almerindo, aquecia a alma com um café com bagaço e fazia, a pé, o trajecto até casa, onde ia buscar a sua máquina.

Apanhava o autocarro até ao rio (no Verão ia ao mar, mas no Inverno os dias são tão curtos!) e tirava fotografias aos cacilheiros, às duas pontes, às aves, às pessoas apressadas que o atropelavam com aqueles saltos agulha e carteiras de pele rígidas. Cruzava-se muito pouco com homens. As pessoas sorriam, achavam graça, mas não sabiam que cada fotografia que ele tira é arrumada num Álbum, com data, e que álbuns assim já ele tem uns cem, só com relatos momentâneos do Rio e de quem o respira.

Algures no tempo perdeu a voz. Ou a capacidade de conversar com os outros. Deixou de sentir necessidade para isso. Expressa-se através dos álbuns que mantém escondidos no quarto onde ninguém entra e por isso continua só. Extremamente só.


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