Arrumou os sapatos em caixas de cartão. Cada par numa caixa, com uma inscrição por fora “saltos altos do casamento da Milena” (pumps, diz a Vogue e ela acena que sim) ou “Havaianas azuis”. Cada caixa vazia que agarrava, pensava em si, em como estava seca por dentro, vazia como uma caixa, seca como um cartão.
Agarrou em lençóis de flanela, com os quais protegeu os vestidos de gala, os fatos das reuniões nos bancos e nas seguradoras (tailleurs, diz a Vogue e ela diz “claro”), os sobretudos (trench coats, diz a Vogue e ela acredita), os casacos de cabedal (a Vogue também diz de outra maneira, mas isso ela já não se lembra, lembra-se sim, bombers de cabedal, assim é que é).
Sorri com as parvoíces que as amigas insistem que ela saiba. Palavras demodé, sentimentos demodé, vidas demodé se não forem frenéticas e frívolas. Pessoas in, pessoas out.
Agarra em tudo o que arrumou e põe em caixas de cartão maiores, como matrioskas, do mínimo ao máximo. Olha bem para aquele jogo, o grande que engole o pequeno, o lobo e o capuchinho, e apercebe-se que, para onde ela vai, não precisa de nada daquilo. Não vai ter galas nem reuniões nem festas de casamento.
Risca a inscrição do caixote “roupa” e escreve “coisas para dar”.
Levanta-se subitamente e abre a gaveta dos relógios, desde o primeiro que recebeu ao último, modelos antigos e novos, caros e baratos, nas suas caixas respectivas. Tudo na vida está encaixotado, até mesmo as pessoas, empacotadas com a legenda “por viver”.
Do quarto está tudo escolhido, acaba por não levar nada porque sabe que para onde vai tem tudo o que precisa.
Vai para a sala. Da janela grande, aquela que banha a sala de uma luz irrepreensível, vê-se o Tejo, o Cristo Rei, a ponte. Há muito tempo que ela não via esta paisagem. No dia em que comprou este apartamento, lembra-se de ter sido o factor de desempate com o rival directo. “Olha a vista, Fernando!” A vista tornou-se parte da paisagem, como um bibelot oferecido que nunca se soube muito bem onde pôr.
Os jarros cheios de flores, gerberas, cravos, rosas, cheios de cores.
Custa-lhe deixar os cêdês, que compra desde o primeiro ano da faculdade (há muito tempo: há quanto?), mas também os guarda dentro de caixotes. Detém-se num, coloca no leitor e ouve aquela canção; apetece-lhe chorar mas não o faz. Continua.
Os livros. Vai buscar a primeira mala e enche-a com todos eles; não é capaz de os deixar para trás. Vai buscar a segunda mala e também a enche até cá cima. Põe, a custo, as duas malas ao pé da porta de saída.
Para onde ela telefonou, disseram-lhe expressamente “Pode trazer até três malas”, como se o Céu aceitasse malas. Mais uma com o básico e já perfez o máximo permitido.
Escova de dentes, gel de banho, creme para a cara, corta-unhas, pijamas, pantufas, roupa interior de algodão (a de renda, cetim e afins já está dentro de algum dos caixotes), roupão, toalhas e lençóis para não incomodar ninguém com pedidos estúpidos, queria levar o secador com que sempre secou as madeixas longas do seu cabelo, a máscara com que as nutriu toda a vida, o creme de brushing que lhe custou uma fortuna, as escovas: a redonda, a de dentes de madeira, a de crina. Olha-se ao espelho da casa de banho, que sempre a desfavoreceu. O cabelo cai sobre as costas como um fardo pesado, parece querer engoli-la. Agarra numa tesoura e corta as pontas. Acha pouco. Corta mais.
Quando dá por si, está sem madeixas, sem nada. O cabelo reduzido a uma camada de fios desagradavelmente espetados e ásperos.
Vai buscar fotografias aos álbuns: do João, do Fernando, da mãe, do irmão, do pai, dos sobrinhos, cada vez maiores, afinal sempre ficou para tia, como agouravam as tias velhas também elas deixadas para trás, da Milena, da Ester, do Marco, do tio, da prima Susana, dos filhos do primo Luís, crianças ainda com barrigas roliças e lábios deformados pela chucha, mas sem pretensões a nada. Guarda-as na mala (na terceira). Fecha-a. Lembra-se da cunhada. Abre o álbum, escolhe uma onde ela apareça, abre a mala, coloca lá dentro a fotografia, fecha a mala. Fecha o álbum. Ainda o folheia, mas acaba mesmo por fechá-lo.
Desliga o telemóvel. Antes de arrancar o fio do telefone fixo, faz uma chamada para os táxis, a praça é ali mesmo, em dois minutos estão cá para a virem buscar. Arrasta as malas para o elevador, desce com elas, ou melhor, de cócoras em cima delas, porque o espaço é pouco e ela e as três malas não cabem naquele cubículo exíguo.
Enquanto espera o táxi (“Hoje está a demorar”), encontra-se naquela rua, naquele momento, olha-se nos seus olhos, quarenta anos e afinal nenhum plano, nada que a prenda a isto que toca com os pés e as mãos. Os dois minutos afinal duraram realmente dois minutos, o táxi chegou, ela é que deixou o relógio em casa, agora já tem tempo para tudo mas não sabe para quê, e também a sua vida passada em revista não tem grandes épocas onde ela possa parar e demorar um pouco mais, mirando-se e remirando-se através da brecha da memória.
“É para Coimbra.”
O taxista olha-a espantado mas segue viagem. Em duas horas, vê a Torre da Universidade, o rio Mondego, as pessoas mais afáveis (se calhar mais demodé, e ri por dentro com este pensamento). Não diz para onde vai, mas aponta caminhos. De repente, a paragem, o pagamento, as malas fora do porta-bagagem.
Bate numa porta castanha com o punho fechado. Não passa ninguém na rua. Volta a bater. A porta abre-se.
Uma voz. “Gabriela?”
Ela não responde, contém a respiração, de repente deu-lhe para hiperventilar, um misto de curiosidade e medo, de alegria e de profunda melancolia.
“Estávamos à sua espera, mas compreendemos a sua demora. O que está prestes a fazer exige muita força. Chegámos a pensar que teria desistido.”
Não responde. As três malas sozinhas no passeio, o conteúdo de cada uma escolhido a dedo.
“Trouxe malas, Gabriela?”
“Não.”
As malas abandonadas, deixadas ao acaso. A porta que se fecha atrás dela e um corredor húmido, pouco iluminado.
“Eu sou a irmã Isabel e vou levá-la a conhecer a Madre Superiora. Vamos?”
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