Sacudiu os tapetes e as colchas da casa velha. Abriu as portadas das janelas, de par em par, como escreviam nos livros da primária e nos contos que a mãe lhe lia ao deitar
e de par em par como ela andava, desorientada, como uma borboleta de flor em flor, de pólen em pólen, procurando o pólen mais doce e a flor mais suculenta
e a frescura da serra invadiu a casa, percorreu corredores e quartos e ajeitou-se nos cantos, no soalho, nos candeeiros, nas esquinas.
A mobília estava coberta por lençóis, tão esburacados e translúcidos que deixavam antever móveis empoeirados, madeiras escuras, gavetas pesadas. Passou os dedos pelos móveis e escreveu através do pó, a madeira de repente brilhante adivinhando-se entre as letras, entre os ácaros. A água podre de uma jarra vazia sobre a mesa da sala difundia pela sala o odor fétido e acre que abandonara na cidade,
na sua velha vida.
Abriu a porta da frente - entrara para a casa velha pela porta das traseiras,
entrara radiante na sua vida nova a recomeçar ali na casa velha
e o verde da montanha que adiante se erguia entrou pelos seus olhos a dentro. Se do vento, se do medo, se da alegria, se da comoção, não sabe, mas arrepiou-se e abraçou o peito, de repente frio e quieto, para logo se lançar em batimentos acelerados.
Afastou com os pés as folhas que escondiam o chão do alpendre, mas o manto insistia em permanecer, teimoso. Com uma vassoura quase careca arrastou para um canteiro de jardim, todas aquelas folhas, sinal óbvio de ausências longas e (demasiado?) prolongadas.
Tudo naquele lugar permanecia inquietantemente igual. O som surdo do riacho - daqueles sons que podemos nem dar por eles, mas estão sempre presentes - correndo não muito longe, o vento suave e frio movendo continuamente os ramos e as folhas, pelo chão e pelo ar e o mover do mar e das marés rolando pedras de calhau pela praia.
Tudo naquele lugar lhe parecia tranquilamente igual. O verde da montanha - ou os verdes, os vários tons se confundindo encosta acima, vencendo rochas e ar rarefeito. O amarelo e rosa-pálido das flores, algumas delas plantadas pelo avô, outras que ali cresceram, silvestres, em terra fértil de amor e húmus. O azul do mar, feito de profundezas e dias brilhantes, de algas, sargaço e desconhecido.
Tudo ali lhe era familiar. A casa de cal e o seu varandim de ferro verde e tapa-sóis de madeira rangente, o alpendre e a cadeira de baloiço, as anoneiras e as camas de rede, as fechaduras e as dobradiças enferrujadas pela maresia e a imobilidade. As vinhas, os cachos de uvas podres ou secas como passas ao sol e o perfume doce, quase enjoativo que o tempo fizera grudar às paredes da casa e à terra do quintal. E o velho plátano, mais velho que as vigas que sustentavam a casa e mais velho que as pedras dos muros que a rodeavam, o velho plátano, que se erguia do lado esquerdo da casa, as suas folhas recortadas como cada episódio da vida, como cada fotografia mental tirada em cada dor e em cada alegria. Como o avô desejara cortar aquele plátano, serrar o tronco desenhado a lascas de madeira, tingido a dois tons, sólido e imponente como uma ilha, e como, no último minuto, sempre desistira, de lágrimas nos olhos. O plátano alto e assustador, o plátano acolhedor e vibrante.
A ele regressaria. Sempre o soube. Àquele plátano, que a vira crescer sob a sua sombra. Àquele lugar, que era seu por direito e dever.
Ali regressou para finalmente ficar.
"And you won't get hurt
If you just
Keep your hands up
And stand tall
Like sycamore."
Bill Callahan
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
No comments:
Post a Comment