Pessoas que passam sem sorrir, na rua, muito vestidas (casacos, cachecóis, luvas, gorros, calças, sobretudos). Abrem a boca mas não falam, não sabem usar as palavras, abrem a boca para fumar um cigarro ou para bocejar, mas não para falar.
Olham de lado para as crianças menos vestidas que elas, com frio, com fome, sem ternura, sem escola. Lembram-se apenas das palavras mais cruéis "Desanda-me da frente".
O uso da palavra em desuso.
Carregam sacos de presentes para os filhos, que lhes oferecem a pretexto de nada "Ai que lhe caíu um dentinho" mas não sabem se sentar ao lado deles e conversar.
Perguntam "Como foi a escola?" só por perguntar porque não ouvem as respostas que lhes são dadas.
Todo o sistema auditivo desperdiçado quando só serve para ouvir o barulho do metro "Próxima estação Olaias", para ouvir as buzinadelas, os motores, as notícias do trânsito "complicado no nó de Sacavém".
Pessoas que passam apressadas e aos encontrões, uma adolescente que faz o relato do transbordo na estação de comboios "E agora o senhor da camisola azul passa em frente da senhora de gola de pêlo, mas é rapidamente ultrapassado pelo dread com walkman".
Não têm tempo para nada, nem sequer para olhar para a pessoa que está ao lado deles e esboçar um sorriso.
Depois, quando sentem necessidade de falar (apesar de Desumanos, partilham com a raça humana algumas características), abrem a boca e já se esqueceram de como é que funciona a língua, as cordas vocais, as áreas cerebrais de Broca e de Wernicke, os lábios (eles já nem beijar sabem). Sai-lhe uns determinados grunhidos e ficam muito aliviados "Ai 'tava mesmo a precisar de desabafar" e a outra pessoa fica muito contente porque parou durante dois segundos e ouviu sem interromper (é uma grande vitória).
Eu, que olho para eles da minha janela e com eles me cruzo todos os dias, tenho vontade de rir e de chorar. Humana, sempre.
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