Acordava a meio da noite com suores frios, a boca seca entreaberta, os músculos doridos, os lençóis franzidos entrelaçados nas suas pernas, também eles húmidos, o corpo febril. A luz da Lua abraçava as linhas rectas dos móveis: a secretária à janela, a cómoda, a estante, a sua cama.
Despertava por entre o luar e o torpor, levantava-se, sôfrego, e agarrava no bloco de capa preta cartonada, a caneta na mão esquerda ("os canhotos são filhos do Diabo", costumava dizer a avó Miquelina quando ele era pequeno, como se de uma praga se tratasse), as letras ocupavam agora o seu lugar correcto e específico, sem margem para erros, formando palavras, que escorregavam da sua pele para o papel, linhas oblíquas e curvas oblongas, formando frases e histórias em cada folha branca que passava.
Cada página era um local, um passeio, uma viagem, um sonho, uma trip. Cada hora de sono perdida era uma homenagem simples àqueles com quem se cruzava todos os dias, o vizinho com o cão, a vizinha e o saco de lixo, o senhor do quiosque, a senhora do café, a mulher-avião que o olhava abertamente no metro, a velhinha a quem ele ajudava a transportar os sacos de compras, o condutor apressado que quase o atropelava na passadeira.
De manhã acordava para ir para o trabalho, era segurança num ginásio, via entrar as tias que o olhavam com desprezo e pediam "Duas toalhas" e ele, cansado, entregava-as na mão, todo ele sorrisos e falsas cortesias. O bloquinho de capa preta cartonada ficava no bolso direito do seu casaco, à espera de ser ocupado com vida. Com vidas.
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