“Lembras-te de termos passado uma tarde de Outono juntas, o vento empurrava o nosso corpo para trás, levantava as folhas do chão fazendo-as rodopiar aos nossos pés num baile sem ritmo e a música que cantarolavas fazia-me querer dançar com as folhas na calçada portuguesa do Chiado, enquanto ríamos sem parar das nossas tentativas inúteis de andar contra o vento, os braços com um saco cheio de livros a remar contra as rajadas, o cabelo que insistia em tapar-nos os olhos, o João que telefonou a perguntar
Está um temporal, não é melhor virem para casa?
a nos dar mais razões para querer ficar, para querer aproveitar aquela tarde só nossa, e nós deste lado, palavras ao vento,
Achas? Isto até está agradável!
e muitos risos que o vento também levava e dentro de nós um peito quente, cheio, como uma barriga depois de uma fausta refeição, a despertar para aquele Outono dourado, cheio de promessas a cada passo que dávamos.”
“Pois foi, e de repente chuva e um chá e calma, olhámo-nos cúmplices porque aquele era o Outono da vida, apesar da natureza morta pelo vento seco e frio, sabíamos que dentro de nós renascíamos, que este peito não estava cheio de nada, éramos nós quem despertávamos de um sono sombrio, e a partir de hoje não vai haver dor porque a água da chuva lavara-nos a alma e o coração
washed away
porque crescêramos, agora somos mulheres e à nossa volta o mundo sorri, porque afinal ninguém precisa de ninguém se estas tardes de Outono continuarem assim bonitas, agora que vemos tudo com mais clareza e o coração já não bate tão depressa, o único cheiro que sinto é o do movimento incessante das folhas na calçada, afinal o mundo sempre sorriu, nós é que não reparámos
Por isso a partir de hoje vamos pôr mãos à obra e fazer com que o mundo gire à volta de quem precisa de nós.
disseste, triunfante, e brindámos a isso com a chávena; nesse momento a Terra interrompeu a rotação à volta do nosso umbigo, girou com mais força e nós saímos para apanhar chuva; enquanto eu cantarolava, tu fingias dançar porque não querias pisar os riscos pretos da calçada e eu achei
Nunca fui tão feliz.
E tu sorriste como eu nunca tinha visto e pareceste-me a mulher mais bonita do universo.”
(Para a Ni)
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