19.3.09

Do passado, outra vez: "Sei que partiste e avisaste"

Sei que partiste e avisaste. Ao contrário das outras histórias de amor, dizias: “Eu não sou perfeita.” Não sabias que a perfeição reside em ti, nos teus gestos, nos teus olhos cor de lagoa. Olhavas-me nos olhos e ameaçavas: “Qualquer dia vou-me embora.” Não aguentavas esta hipocrisia de país, o desespero das avós reformadas, das mães em part-time, dos políticos sem ideias, dos artistas estagnados. Achavas que ias encontrar um mundo melhor. Eu ia vivendo assim, ouvia-te falar sem parar das máfias, dos lobbies, ia acenando que sim a tudo, mas do que eu queria mesmo saber era do meu ordenado ao fim do mês, do meu nariz comprido, do meu umbigo redondo. Se o mundo andava ao meu lado, eu nem me dava conta. Era feliz… Bom, pensando nisso, se calhar não era feliz, mas contente. Estava contente com a vidinha simplória que levava (levo), não precisava de mais nada. Por isso ia dizendo que sim aos teus discursos, dava uma moeda de cinquenta àquela romena que dormia com o filho à entrada do meu prédio e ia vivendo. Era o que eu andava a fazer, a ver a vida passar-me como uma apresentação de slides.
Ameaçavas: “Qualquer dia vou-me embora.”. Eu ria-me, achava piada à tua mania de que eras capaz de mudar o mundo com um bilhete de comboio. Se calhar do que eu gostava mesmo era da forma como os teus olhos brilhavam quando falavas e eu te ouvia, como a cor lodacenta se tornava orvalho quando te entusiasmavas.

Não perguntavas se eu queria ir contigo porque sabias que eu não queria. Também nunca acreditei que fosses mesmo embora. Que fosses capaz de mudar assim a tua vida, mas é estranho, quando li a tua carta naquele domingo, não me espantei que tivesses ido. Queria ter-me despedido de ti, ter-te levado a jantar naquele restaurante onde eu prometera que iríamos jantar quando te pedisse em casamento. Talvez o fizesse e levavas-me contigo, Paris, Milão, São Petersburgo, fosse onde fosse.
Fiquei durante muito tempo - e estou a falar de um ano e tal - a pensar que voltavas. Nunca saía de casa com medo que me tocasses à porta e não me encontrasses. Li muito porque não te queria desiludir quando cá estivesses, queria estar à altura das tuas conversas.
Perguntava à Sofia, à Ellie o que era feito de ti e elas diziam-me que tinham sido apanhadas desprevenidas tal como eu, mas depois desse ano à tua espera, soube que era mentira, que foste jantar com elas (e não comigo) na véspera de ires embora, elas até tinham ficado com o teu novo endereço. Copenhaga.

Achavas que estava parado no tempo, eu era contra o aborto, contra a legalização das drogas leves, contra a entrada de minorias étnicas do país. Suspiravas “Quadradão.”

Queria muito que voltasses, Lídia. Queria que te dizer que afinal já gosto de Pessoa e de Reis, e que o “O Ano da Morte de Ricardo Reis” já é o meu livro favorito, e que afinal andar de metro e autocarro não é tão mau quanto parece, que o Japonês do Bairro Alto é o meu restaurante preferido, que soja e tofu são pratos deliciosos, que a moca de um charro enrolado é um desprendimento momentâneo da alma, queria dizer-te que o cinzeiro pode, às vezes, estar cheio de cigarros mortos, que afinal as putas são vítimas e não culpadas, que de facto este governo é uma merda e este país se calhar não vale tanto quanto eu achava mas que, no fundo, é o meu país e eu gosto dele assim, com o seu Fado de pequeno país mediterrânico que não abusa do tomate, que os homossexuais são pessoas como as outras mas com um desejo sexual diferente do meu, que a manteiga pode estar cheia de migalhas de torrada.
Sempre disseste que ias embora. Com os teus olhos cor de lagoa presos num vaguear etéreo, sentavas-te longe de mim e afirmavas, com as certezas todas do mundo na tua mala e a esperança dentro do necéssaire, “Um dia vou mesmo”.

Publicado a 14 de Novembro de 2004.

The past was a blast, oh yes.

Acometida de uma súbita falta de sono, de que o café há pouco não será ilibado de culpa, ponho-me a reler os posts do Crime Passional, para republicar por aqui (lei do menor esforço, vivaaaa!). A verdade é que não há muita coisa publicável, tendo em conta que os textos eram resultado de interacções e conversas que se passaram num tempo e local específicos. Caramba, há lá posts sobre o meu ex ex namorado quando ainda era namorado e nem tinha conhecido (conhecido sequer!) os meus últimos heartthrobs.

Já nem me lembrava que a vida uma vez aconteceu sem as pessoas de agora, de hoje, incrível como estas se tornaram tão indispensáveis. É bom se tornar outra com os pés no chão.

Growing older, fitter, happier. (A sério, isto não é Radiohead, embora não tenha mal nenhum parecer que seja.)

14.3.09

O maravilhoso mundo das internétes.

@utilizadoresdotwitter sinto como se uma página da vida da internet me estivesse a passar ao lado.

Um twitter meu seria tão desinteressante como "Agora vou ouvir Matt Elliott enquanto arrumo o quarto.", "@alguém, o 30 rock é a melhor série de sempre. sou a tina fey." e citações de canções e de livros, acompanhadas de "sinto algum borborigmo intestinal." ou "preciso de treinar a bexiga para urninar menos vezes agora que bebo muita água".

Melhor ainda era um twitter com os meus progressos no ginásio, acompanhado dos desejos alimentares súbitos pregnancy-like-but-not-even-close. Ontem tive de ir de urgência ao supermercado comprar batatas fritas Lay's Gourmet . Aquela textura estaladiça por causa da maior espessura da batata acalenta-me a esperança por um mundo melhor.

Um mundo onde os meus netos ouvem o Matt Elliott e vão mostrar aos amigos "encontrei este disco em casa da minha avó, esta merda é perfeita", dirão. Espalhem a palavra, encontrei a redenção. (Que belo concerto ontem, b r u t a l.)

@pedromorsa, @oprah já tive um cocker spaniel assim, o Napi. Ainda hoje tenho saudades dele.

10.3.09

sem título

Morreremos um dia, dia após dia, um atrás do outro, alguém primeiro. Já nos sinto definhar, somos nós tanto quanto padecemos de uma grave doença terminal, e, enquanto asfixiamos em pathos, resolvemos ser melhores e mais voluntariosos, terminar em beleza diria o atencioso empregado de mesa enquanto enumera a carta de sobremesas.

Sempre fôramos eternos reféns de um entidade deixada por definir, enfermos da própria anunciada cura, cegos. Embora soubéssemos.

Que um dia cairíamos ao leito, consumidos por nós mesmos, sucos gástricos e bílis, ou então, mais plausivelmente ainda, já não darmos conta do recado e isto tornar-se maior que nós, de tal forma que já nem o corpo suporta o crescimento e a prosperidade, que antes nos fôra tão cara, seja apenas mais uma arma da nossa dolência.

Morreremos um dia com a certeza de que mortos estaremos mais vivos.