De onde estavas, não me vias e eu via-te a ti, cansado, cada perna pesava mais do que a vida alguma vez pesou e agora o coração mais frequente e a respiração mais dolorosa a complicarem o ritmo rápido e descoordenado dos teus membros, no entanto o tronco mantinha-se rígido, ponte insustentável de um corpo frágil e desconexo, franzino e esguio.
Mantive na memória (onde ficará para sempre) os teus olhos sem órbita, esferas perfeitas que fogem do abrigo do rosto, o teu nariz quase invisível, os ossos da cara angulados sob a pele acentuando a carga dramática da tua beleza esquálida. Usavas aquela camisola negra tamanho XXL, desbotada nos cotovelos, que te escondia o tronco cada vez mais magro, as costelas e o esterno -irrepreensível escudo de uns pulmões que anos de fumo enegreceram.
Eu trazia o envelope na mão, a confirmação da tua morte, porque quando te telefonei apercebi-me que as minhas palavras te feriam como punhaladas na tua convicção, que não resistirias a passar por isto, ainda para mais só, sem heroína ( a metadona tinha funcionado tão bem e agora isto) e sem heroínas, agora nada nem ninguém poderia tirar-te de dentro desta carta, igual às outras, é certo, letras pretas sobre papel branco, o teu nome a começar o texto, o Pos. à frente daquelas siglas que deveria ser Neg.. Telefonei "Chegou o envelope."
"Abre, abre, lê-me, diz-me, vais ver como não passou de um erro infantil da puta do laboratório." Tu cheio de infinita certeza, desde pequeno que és assim, achas que a vida só castiga os outros.
"É positivo, querido. Mas tem calma porque há tratamentos..."
Sabias que os tratamentos na maior parte das vezes adiam a data da morte por isso desligaste-me o telemóvel sem sim nem senão. E eu fui ter contigo à praia, o sol punha-se por entre rajadas de vento, a cor do fogo que ardia cada teu passo ao meu encontro, ah se eu pudesse queimaria aquele papel que tinha na mão e viveríamos sem remédios nem contagens de leucócitos CD4s nem medos de infecções oportunistas nem preservativos obrigatórios. Mas tu já corrias e já sabias.
De repente vês-me e abrandas a marcha, gradualmente, até parares. E gritas "REPETE!".
"É positivo, porra!"
E então cospes a culpa, a injustiça, a dor, a parcialidade, a SIDA, a morte num só grito, as palmas das mãos sobre as tuas orelhas para que não te ouvisses.
"AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHH"
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Munch- O Grito
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