25.4.06

Ponta Delgada, freguesia de S. Vicente, ilha da Madeira

O homem da venda perguntava sempre tudo duas vezes

Disseste amendoins?
Sim.
Amendoins?
Hmhm.

Virava-se para o armário e procurava, percorrendo com os dedos as etiquetas

louro, cacau, café, arroz, sal, colorau, pimenta, feijão, grão, amendoins

Os frascos eram enormes, de barro, sempre cheios até cima. Ele tirava com a mão os amendoins, torrados e com casca, e espalhava sobre uma folha de papel pardo. Em três gestos o embrulho ficava feito. Depois pesava numa balança enorme, daquelas que pesam coisas muito pesadas, e o ponteiro muitas vezes nem se mexia com o meu pacotinho de amendoins. Então o senhor José sorria

Que moeda é que tens?

e eu abria a mão, onde reluziam cinco escudos e ele

São cinco escudos.

entregando-me o pacote.

O homem da venda passava o tempo todo fora dela, sentado nos degraus ao pé da porta, vendo quem passava na rua, cumprimentando

bom dia, boa tarde

conforme a hora. Gente que descia para o mar ou para a Igreja, que já o sabiam de cor, que sem o ver já diziam

bom dia, boa tarde

comforme a hora.

E a sua mercearia cheirava a tudo e a nada e eu gostava de lá ir e de o ver conversar com o primo mudo, que me reconhecia e que sempre me intimidara sem eu saber porquê.

O primo mudo, não lhe sei o nome, sempre o chamaram o Mudo, era velho e comunicava sem falar, porque nascera surdo e nunca ninguém o ensinara a falar. Era meu primo afastado como toda a gente em Ponta Delgada é minha prima afastada. Ele não era excepção. Quando eu passava, os dois sentados nas escadas à conversa por gestos e sons e eu ouvia

Lá vai a neta do senhor Baptista, bom dia

o que fazia com que o Mudo reparasse em mim e me chamasse à maneira dele, mas eu não gostava de me aproximar porque tinha medo ou vergonha, não era como a minha prima Amélia que falava aos gritos como se o aumento de volume fosse fazer vibrar qualquer coisa

VAMOS PARA A PISCINA!

e ele encolhia os ombros mas a Amélia cada vez mais alto

VAMOS PARA A PISCINA!

e ele acenava que sim, porque lia nos lábios, e perguntava com a mão pelo meu avô, ao menos eu sempre achei que ele estava a perguntar pelo meu avô quando fazia aquele gesto com a mão

está em casa

e a voz era sumida e os lábios semi-cerrados e as mãos dentro dos bolsos, por isso a Amélia, freneticamente apontando rua acima

ESTÁ EM CASA!

e depois rua abaixo

NÓS JÁ VAMOS!

e eu tirava a mão do bolso e acenava.

Houve um Verão em que a venda estava fechada e as escadas vazias. E eu fiquei com o coração apertado.

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