O homem da venda perguntava sempre tudo duas vezes
Disseste amendoins?
Sim.
Amendoins?
Hmhm.
Virava-se para o armário e procurava, percorrendo com os dedos as etiquetas
louro, cacau, café, arroz, sal, colorau, pimenta, feijão, grão, amendoins
Os frascos eram enormes, de barro, sempre cheios até cima. Ele tirava com a mão os amendoins, torrados e com casca, e espalhava sobre uma folha de papel pardo. Em três gestos o embrulho ficava feito. Depois pesava numa balança enorme, daquelas que pesam coisas muito pesadas, e o ponteiro muitas vezes nem se mexia com o meu pacotinho de amendoins. Então o senhor José sorria
Que moeda é que tens?
e eu abria a mão, onde reluziam cinco escudos e ele
São cinco escudos.
entregando-me o pacote.
O homem da venda passava o tempo todo fora dela, sentado nos degraus ao pé da porta, vendo quem passava na rua, cumprimentando
bom dia, boa tarde
conforme a hora. Gente que descia para o mar ou para a Igreja, que já o sabiam de cor, que sem o ver já diziam
bom dia, boa tarde
comforme a hora.
E a sua mercearia cheirava a tudo e a nada e eu gostava de lá ir e de o ver conversar com o primo mudo, que me reconhecia e que sempre me intimidara sem eu saber porquê.
O primo mudo, não lhe sei o nome, sempre o chamaram o Mudo, era velho e comunicava sem falar, porque nascera surdo e nunca ninguém o ensinara a falar. Era meu primo afastado como toda a gente em Ponta Delgada é minha prima afastada. Ele não era excepção. Quando eu passava, os dois sentados nas escadas à conversa por gestos e sons e eu ouvia
Lá vai a neta do senhor Baptista, bom dia
o que fazia com que o Mudo reparasse em mim e me chamasse à maneira dele, mas eu não gostava de me aproximar porque tinha medo ou vergonha, não era como a minha prima Amélia que falava aos gritos como se o aumento de volume fosse fazer vibrar qualquer coisa
VAMOS PARA A PISCINA!
e ele encolhia os ombros mas a Amélia cada vez mais alto
VAMOS PARA A PISCINA!
e ele acenava que sim, porque lia nos lábios, e perguntava com a mão pelo meu avô, ao menos eu sempre achei que ele estava a perguntar pelo meu avô quando fazia aquele gesto com a mão
está em casa
e a voz era sumida e os lábios semi-cerrados e as mãos dentro dos bolsos, por isso a Amélia, freneticamente apontando rua acima
ESTÁ EM CASA!
e depois rua abaixo
NÓS JÁ VAMOS!
e eu tirava a mão do bolso e acenava.
Houve um Verão em que a venda estava fechada e as escadas vazias. E eu fiquei com o coração apertado.
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