23.9.07

[Lisbowood]

Poderia começar: Imagino um filme em transe e por trás música trance, luzes, efeitos de luzes e fumos, o corpo descontrolado num corredor onde pessoas, homens e mulheres, mulheres e mulheres, homens e homens se beijam. Beijos molhados à la Shortbus, beijos com o corpo todo - as mãos, as víseceras, os pénis e clítoris, roupas que caem pelo chão, uma por uma, peça a peça, depressa.

Poucas expressões me irritam tanto como à la. Acabei de usá-la, bem sei. É um estrangeirismo incomodativo: ó sim, a crítica de estrangeirismos que passa metade da vida a falar em francês, inglês ou castelhano. Não posso criticar ninguém porque eu própria faço tudo aquilo que me irrita. E continuo a criticar, o que é surpreendente.

VOltando ao filme. Afinal não passa música trance, mas passa Von Südenfed na discoteca de paredes sujas. A rapariga que circula - um autêntico lugar-comum, numa má trip, aliás, numa péssima trip, a miúda de franja e cabelo castanho claro, cortado a direito nos ombros, o corpo ossudo e longilíneo - dá encontrões aos casais encostados à parede (alguns nem casais são, são grupos de três ou quatro pessoas, de afectos misturados). Falta-lhe nitidamente alguém - como se tivesse alimentado o corpo e faltasse alimentar o espírito. Um rapaz agarra-a, tem grande parte dos dentes podres mas uns olhos extremamente profundos e tenta beijá-la. Ela nem o vê nem o sente imediatamente, quando o faz, só a boca está ao alcance do olhar - os dentes negros, a halitose, os buracos pela falta de peças dentárias. Ela contrai-se num espasmo - primeiro pensa-se que é a dançar, como que a provocá-lo, depois não, é um espasmo emético, um vómito biliar, de dentro de si para o chão [agora ainda mais] imundo, para logo ser pisado por pés e espalhar-se pelo pavimento, em pegadas progressivamente mais finas, até se diluir com o visco que cobre a alcatifa.

Poderia começar assim, e continuar, com um olho nos últimos filmes que vi, e os dedos no últimos livros que li. Os ouvidos certamente presos às Tromatic Reflexxions, que me fazem pensar em sub-woofers e na necessidade imperiosa de ter, em Lisboa, um sistema de som decente, onde se oiça cada som, cada vibração, para que as paredes dancem, estalem e caiam objectos ao chão e toda a casa me persiga e, em vez de uma discoteca suja, onde há suor e droga a mais, por onde passeio o corpo e abano os membros - também eu longilínea e ossuda, embora sem franja e com o cabelo escadeado. A casa cada vez mais estreita contraindo-se em meu redor, para logo asfixiar-me em tinta branca e betão armado. A casa impecavelmente limpa, arrumada, numa organização sem par em qualquer outra área da minha vida - o resto é sempre o caos, com as ideias por arrumar, os amores por perceber, os laços por atar.

Os posts grandes onde alinho ideias que só fazem sentido agora - as ideias, boas ou más, só aparecem uma vez. Também é assim com tudo o resto: a vida é uma metáfora de si mesma; o simbolismo dos exemplos são sentidos práticos de factos acontecidos ou por acontecer. Uma má trip - ou um mau dia, se é que eles existem. Tromatic Reflexxions: faz-me sorrir, parece que hoje tudo encaixa, tudo se encadeia. Finalmente. Não há coisas más, nem acontecimentos maus nem más trips, nem nada. Há lugares traumáticos (lugares, num sentido lato, de tive este momento, estive ali, com tal pessoa, a fazer tal coisa) e lugares agradáveis, a que- nem que seja com a memória - queremos voltar.

Poderia acabar: ela deitou-se, ou caíu, e acabou por adormecer (ou ficar inconsciente). Foi um final feliz.

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