18.4.05

As escadas

Eram umas escadas bolorentas, que emanavam bafio, esburacadas do caruncho, de corrimão pouco seguro. Entre a parede e o degrau, um rodapé marcado por buracos de ratazanas gordas, camuflados por vasos de plástico, com fetos e plantas de interior algures entre a vida e a morte, apenas alimentados pela humidade daquele corredor.

Às quatro horas, a mesma mulher, todos os dias, descia-as degrau a degrau, passo a passo, as duas mão sobre o corrimão instável, o corpo numa alucinação vertiginosa de queda iminente. Às sete horas, a mesma mulher, subindo-as, as duas mãos ocupadas com sacos do mercado, pretos e pequenos, o odor a sardinha chamando as ratazanas ao patamar. Depois, o borbulhar do óleo, as sardinhas fritas, o barulho dos talheres e dos pratos, primeiro na mesa, depois na pia.

Hora do terço. A mulher vinha à rua e deitava para o corredor as espinhas e as peles dos peixes, cantarolava "Ponha a mão na mão do meu Senhor", fechava a porta, ligava a telefonia.

Sentava-se na cadeira de baloiço, também ela corroída pela falta de cuidado, o rosário de prata entrelaçado entre os dedos, a Bíblia com os cantos roídos pelos ratos, tanto que as marcas visíveis dos seus dentes aguçados não deixavam ler o último parágrafo de todas as páginas do Novo Testamento.

Nove horas e o filho que não lhe ligava, há nove anos que assim era e, mesmo assim, todos os dias ela debruçava-se sobre o telefone preto, de olhos brilhantes, coração na mão. E o silêncio sepulcral na casa vazia, cada dia mais triste, mais só, mais morta.

Um dia, nas escadas, o cheiro a morte tornou-se insuportável. A vida perecera naquele corredor, de repente sem passos, sem óleo ou sardinhas, sem o ranger da madeira.

Sem um único telefonema do filho.

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