É tão relativo o que e quanto se quer. Uma moeda, um tecto, uns sapatos, um livro, uma viagem, um avião particular, uma ida à Lua.
Hoje, 16 de Outubro, é o Dia Mundial da Nutrição mas na Baixa parecia o Dia Mundial da Pobreza. Fico sempre triste e incomoda-me - não o pedido desesperado, mas saber que há pessoas em condições tão precárias, mas sou de uma hipocrisia atroz. Hipócrita, é como me sinto.
19.10.07
O grande mistério das refeições pré-congeladas do Metro.
É só isso, é para mim um grande mistério. Aquela máquina, com um vidro através do qual se vê uma espécie de distribuidor, ou dispensador, as fotografias de esparguete à bolonhesa com péssimo aspecto, o fundo azul piscina, o slogan "Leve a sua refeição num minuto" ou "O seu jantar no Metro": é tudo para mim demasiado confuso e incógnito.
Como Ofélia terá uma dia escrito a Fernando
Gostava de escrever-te uma carta. Manuscrita, na caligrafia mais bonita que conseguisse fazer, em papel pardo, para pintar com aguarela umas flores nos cantos ou fazer um friso no cabeçalho.
Penso nisso - em como começaria essa carta (o coloquial "Olá, como estás?", o afectuoso "Querido indivíduo" ou o directo "Indivíduo" seguido de uma vírgula e de uma mudança de parágrafo e, aqui, substituir indivíduo pelo teu nome, cada letra desenhada com a caneta a forçar a folha, sem rasgar). Penso nisso e penso em como começar isto (seja lá o que isto for).
Penso nisso - em como começaria essa carta (o coloquial "Olá, como estás?", o afectuoso "Querido indivíduo" ou o directo "Indivíduo" seguido de uma vírgula e de uma mudança de parágrafo e, aqui, substituir indivíduo pelo teu nome, cada letra desenhada com a caneta a forçar a folha, sem rasgar). Penso nisso e penso em como começar isto (seja lá o que isto for).
É bom conhecer-te - e é bom quando te dás a conhecer. Da mesma maneira, sabe bem ouvir as tuas confissões, os teus receios, as tuas dúvidas, as tuas crises de auto-estima, mesmo que não faças por mas contar: eu topo-as, eu leio em cada palavra tua a verdade por trás escondida. Conheço-te melhor do que toda a gente que julga conhecer-te. Sei que não tem sido fácil. Que a vida abandonou-te demasiadas vezes para que acredites nela - ou melhor, que a morte desatou demasiados laços e agora não te apetece encontrar novas fitas. Que, por vezes, olhas à volta e estás só tu, só, por tua culpa - e nesses dias, sentes-te a pior pessoa do mundo, tão nojento quanto uma barata (e, ainda assim, não sobreviverias a um ataque nuclear). Que tens medo de não estar à altura daquilo que te propões - e, provavelmente por isso, não te propões a nada.
15.10.07
Auto-biografia
Às vezes, nas pequenas coisas, regresso à infância, a uma era em que o mundo era uma ilha, uma praia, uma família e se estava tão bem assim.
Ali, mais nada era preciso: nem o amor por um outro, nem a superação cultural, nem a necessidade de valorização (própria e pelos outros), nem o sexo. Podia ser ingenuidade, por si só – não conhecer mais nada significava não querer mais nada e o mar limítrofe daquele rectângulo isolado ser suficiente para aquilo que se conhecia. Os carrinhos de choque no Natal, o fogo de artifício no fim do ano, os disfarces no Carnaval, as flores e os passeios ao Parque de Santa Catarina na Primavera, a praia, o mar e Ponta Delgada no Verão. Os primos que iam e vinham, cruzando o mar de avião para passar as férias, os tios afastados que vinham por longas temporadas, que eu nunca reconhecia como tais (e de quem, durante os anos de distância, acabava por me esquecer), as férias de quinze dias num país a nove horas de distância.
Nunca ninguém tentou esconder-me nada, muito pelo contrário: empurraram-me para a estante da minha mãe desde cedo e eu li. Li muito, de luz quase apagada, o corpo quase a fazer o pino, os braços a doer por estarem a agarrar o livro, li em todo o lado, a qualquer hora, e li de tudo. Escolhi ler muito livro horrível na vida (que eu própria arranjava, raramente eram da estante da minha mãe), e até gostava por contarem uma bela história de amor lamechas e piegas e estúpida, sobretudo estúpida. Tem graça pensar nisto assim porque, à distância, todos os livros que me custaram mais a ler quando era miúda (O Principezinho, Papalagui, Robinson Crusoé, os livros do Dickens, por exemplo), são os livros que agora me trazem uma saudade enorme e uma imensa vontade de redescobri-los. Por volta dos dez anos, ou lá o que foi, li A Tulipa Negra do Dumas e A Volta ao Mundo em 80 Dias do Júlio Verne e comecei a ler outros livros deles, e dizia, quase inocentemente – nunca se é inocente em nada, nem aos dez anos – que eram os meus escritores favoritos. E, a partir daí, reconheço-o, comecei a ler a sério, mais por vontade de ser uma melhor leitora do que pelo livro em si. Ou, por outra, lia mais pelo prazer de ler do que pela fruição do livro.
No fundo, sempre quis imaginar. Criar um mundo e outro dentro do meu mundo, criar uma ilha sobre a minha ilha. Conceber um espaço que fosse para além do mar que rodeava os quatro pontos cardeais. Ser mais do que um ilhéu em contínuo contentamento com o que estava diante dos seus olhos. Talvez por isso tenha crescido e me tornado tão complicada, tão preocupada com as minudências da vida que quase que não me consigo encantar com o que vejo.
Mas não, é provavelmente errado pensar isso de mim. Nada me faz mais feliz do que as pequenas coisas da vida, aquelas que me fazem regressar a essa infância. Essas pequenas coisas que vejo, todos os dias, e que me lembram sempre que sou eu mas, na essência, sou eu e o mundo inteiro dentro de mim, pronto a implodir e a precipitar em instantes.
Raramente me satisfaço com a satisfação e nunca consegui ser feliz no contentamento. Por isso tantas vezes escrevi que a minha felicidade é um momento, breve, frágil, perene - quanto mais o agarro, menos o possuo.
É como se nem todos os seres humanos tivessem vindo à Terra para serem felizes, e com isso lido eu muito bem.
Ali, mais nada era preciso: nem o amor por um outro, nem a superação cultural, nem a necessidade de valorização (própria e pelos outros), nem o sexo. Podia ser ingenuidade, por si só – não conhecer mais nada significava não querer mais nada e o mar limítrofe daquele rectângulo isolado ser suficiente para aquilo que se conhecia. Os carrinhos de choque no Natal, o fogo de artifício no fim do ano, os disfarces no Carnaval, as flores e os passeios ao Parque de Santa Catarina na Primavera, a praia, o mar e Ponta Delgada no Verão. Os primos que iam e vinham, cruzando o mar de avião para passar as férias, os tios afastados que vinham por longas temporadas, que eu nunca reconhecia como tais (e de quem, durante os anos de distância, acabava por me esquecer), as férias de quinze dias num país a nove horas de distância.
Nunca ninguém tentou esconder-me nada, muito pelo contrário: empurraram-me para a estante da minha mãe desde cedo e eu li. Li muito, de luz quase apagada, o corpo quase a fazer o pino, os braços a doer por estarem a agarrar o livro, li em todo o lado, a qualquer hora, e li de tudo. Escolhi ler muito livro horrível na vida (que eu própria arranjava, raramente eram da estante da minha mãe), e até gostava por contarem uma bela história de amor lamechas e piegas e estúpida, sobretudo estúpida. Tem graça pensar nisto assim porque, à distância, todos os livros que me custaram mais a ler quando era miúda (O Principezinho, Papalagui, Robinson Crusoé, os livros do Dickens, por exemplo), são os livros que agora me trazem uma saudade enorme e uma imensa vontade de redescobri-los. Por volta dos dez anos, ou lá o que foi, li A Tulipa Negra do Dumas e A Volta ao Mundo em 80 Dias do Júlio Verne e comecei a ler outros livros deles, e dizia, quase inocentemente – nunca se é inocente em nada, nem aos dez anos – que eram os meus escritores favoritos. E, a partir daí, reconheço-o, comecei a ler a sério, mais por vontade de ser uma melhor leitora do que pelo livro em si. Ou, por outra, lia mais pelo prazer de ler do que pela fruição do livro.
No fundo, sempre quis imaginar. Criar um mundo e outro dentro do meu mundo, criar uma ilha sobre a minha ilha. Conceber um espaço que fosse para além do mar que rodeava os quatro pontos cardeais. Ser mais do que um ilhéu em contínuo contentamento com o que estava diante dos seus olhos. Talvez por isso tenha crescido e me tornado tão complicada, tão preocupada com as minudências da vida que quase que não me consigo encantar com o que vejo.
Mas não, é provavelmente errado pensar isso de mim. Nada me faz mais feliz do que as pequenas coisas da vida, aquelas que me fazem regressar a essa infância. Essas pequenas coisas que vejo, todos os dias, e que me lembram sempre que sou eu mas, na essência, sou eu e o mundo inteiro dentro de mim, pronto a implodir e a precipitar em instantes.
Raramente me satisfaço com a satisfação e nunca consegui ser feliz no contentamento. Por isso tantas vezes escrevi que a minha felicidade é um momento, breve, frágil, perene - quanto mais o agarro, menos o possuo.
É como se nem todos os seres humanos tivessem vindo à Terra para serem felizes, e com isso lido eu muito bem.
1.10.07
Sapos
No Outono lembro-me de apanhar sapos (pequenos como besouros) junto às fontes e aos bebedouros. O primo António, miúdo catita de ideias rápidas e sorriso expressivo, ficava sempre muito desiludido porque os tais anfíbios tinham um ar mais ternurento do que nojento e ele não conseguia assustar-nos com os bicharocos. Ainda assim, meninas como éramos, soltávamos gritinhos de excitação, enquanto chapinhávamos nas poças lodacentas para tentar apanhá-los.
E como pulavam, os estuporezinhos, olhando-nos de lado como a desafiar-nos.
Apanhávamo-los com copos, roubados à sucapa da cozinha, e acabávamos a caça - num sentido figurativo, pois obviamente soltávamos as pobres criaturas quando nos chamavam para o lanche, hora oficial para o fim das brincadeiras na fazenda - com as calças ou collants tornadas castanhas pelo menos até ao joelho e os bibes enlameados, os sapos em copos virados ao contrário, alinhados no muro que separava o casario da quinta ao lado
com terrenos a perder de vista e os telhados da casa grande entre a copa das árvores
e depois - como se ganhássemos asco repentino àquela pele lisa e húmida ou aos olhos esbugalhados dos sapos - jogávamos ao par ou ímpar para decidir quem soltava os sapos na levada.
Uma vez, em que estavam oito sapos à espera da liberdade, fiquei eu responsável por os soltar. Tudo correra bem até ao sétimo sapo, quando o último
e eu que estava com a cabeça distraída, com a cabeça no chocolate quente e no pão-de-ló que me esperava sobre a toalha aos quadrados da mesa da cozinha, e que, por cada sapo que soltava, pensava o quanto preferia estar a ouvir os gritos da mãe enquanto nos encontrava, a mim e aos meus irmãos, naquela figura, que todos os dias se repetia - como a gritaria, os castigos, os banhos antes de lanchar (quando a fome era mais que muita)
quando o último sapo, assustado, dá um salto pequeno e cai-me no pé e depois salta-me para a saia e para o bibe, e todos fugindo em crescente berreiro, os mais novos choravam - sem eu perceber bem se pelo sapo atarantado se pelo meu infortúnio - e as mães saíram, pensando que algum de nós já devia ter que ir ao hospital.
A minha mãe encontrou-me sem roupa, com os olhos dos primos postos em mim, apenas de cuecas, meias e botins, e o meu corpo esguio, com os mamilos que os miúdos nunca tinham visto antes, escorrendo água e o diabo do sapo saltando sobre o bibe.
Nunca dantes o percebera, só agora o percebi, porque é que nessa noite não lanchei com a família toda nem jantei nem fui mais apanhar sapos para o poço da fazenda.
Um corpo de criança quer-se plano como uma folha de videira e o meu, nessa tarde, mostrava claramente que deixava de o ser.
Como disse a minha avó, quando lá foi a costureira dias depois "a gente nem dá por elas, mas quando vai ver estão feitas mulheres". Juro que pensei que ela estava a falar na minha prima que se ia casar.
E como pulavam, os estuporezinhos, olhando-nos de lado como a desafiar-nos.
Apanhávamo-los com copos, roubados à sucapa da cozinha, e acabávamos a caça - num sentido figurativo, pois obviamente soltávamos as pobres criaturas quando nos chamavam para o lanche, hora oficial para o fim das brincadeiras na fazenda - com as calças ou collants tornadas castanhas pelo menos até ao joelho e os bibes enlameados, os sapos em copos virados ao contrário, alinhados no muro que separava o casario da quinta ao lado
com terrenos a perder de vista e os telhados da casa grande entre a copa das árvores
e depois - como se ganhássemos asco repentino àquela pele lisa e húmida ou aos olhos esbugalhados dos sapos - jogávamos ao par ou ímpar para decidir quem soltava os sapos na levada.
Uma vez, em que estavam oito sapos à espera da liberdade, fiquei eu responsável por os soltar. Tudo correra bem até ao sétimo sapo, quando o último
e eu que estava com a cabeça distraída, com a cabeça no chocolate quente e no pão-de-ló que me esperava sobre a toalha aos quadrados da mesa da cozinha, e que, por cada sapo que soltava, pensava o quanto preferia estar a ouvir os gritos da mãe enquanto nos encontrava, a mim e aos meus irmãos, naquela figura, que todos os dias se repetia - como a gritaria, os castigos, os banhos antes de lanchar (quando a fome era mais que muita)
quando o último sapo, assustado, dá um salto pequeno e cai-me no pé e depois salta-me para a saia e para o bibe, e todos fugindo em crescente berreiro, os mais novos choravam - sem eu perceber bem se pelo sapo atarantado se pelo meu infortúnio - e as mães saíram, pensando que algum de nós já devia ter que ir ao hospital.
A minha mãe encontrou-me sem roupa, com os olhos dos primos postos em mim, apenas de cuecas, meias e botins, e o meu corpo esguio, com os mamilos que os miúdos nunca tinham visto antes, escorrendo água e o diabo do sapo saltando sobre o bibe.
Nunca dantes o percebera, só agora o percebi, porque é que nessa noite não lanchei com a família toda nem jantei nem fui mais apanhar sapos para o poço da fazenda.
Um corpo de criança quer-se plano como uma folha de videira e o meu, nessa tarde, mostrava claramente que deixava de o ser.
Como disse a minha avó, quando lá foi a costureira dias depois "a gente nem dá por elas, mas quando vai ver estão feitas mulheres". Juro que pensei que ela estava a falar na minha prima que se ia casar.
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