Às vezes, nas pequenas coisas, regresso à infância, a uma era em que o mundo era uma ilha, uma praia, uma família e se estava tão bem assim.
Ali, mais nada era preciso: nem o amor por um outro, nem a superação cultural, nem a necessidade de valorização (própria e pelos outros), nem o sexo. Podia ser ingenuidade, por si só – não conhecer mais nada significava não querer mais nada e o mar limítrofe daquele rectângulo isolado ser suficiente para aquilo que se conhecia. Os carrinhos de choque no Natal, o fogo de artifício no fim do ano, os disfarces no Carnaval, as flores e os passeios ao Parque de Santa Catarina na Primavera, a praia, o mar e Ponta Delgada no Verão. Os primos que iam e vinham, cruzando o mar de avião para passar as férias, os tios afastados que vinham por longas temporadas, que eu nunca reconhecia como tais (e de quem, durante os anos de distância, acabava por me esquecer), as férias de quinze dias num país a nove horas de distância.
Nunca ninguém tentou esconder-me nada, muito pelo contrário: empurraram-me para a estante da minha mãe desde cedo e eu li. Li muito, de luz quase apagada, o corpo quase a fazer o pino, os braços a doer por estarem a agarrar o livro, li em todo o lado, a qualquer hora, e li de tudo. Escolhi ler muito livro horrível na vida (que eu própria arranjava, raramente eram da estante da minha mãe), e até gostava por contarem uma bela história de amor lamechas e piegas e estúpida, sobretudo estúpida. Tem graça pensar nisto assim porque, à distância, todos os livros que me custaram mais a ler quando era miúda (O Principezinho, Papalagui, Robinson Crusoé, os livros do Dickens, por exemplo), são os livros que agora me trazem uma saudade enorme e uma imensa vontade de redescobri-los. Por volta dos dez anos, ou lá o que foi, li A Tulipa Negra do Dumas e A Volta ao Mundo em 80 Dias do Júlio Verne e comecei a ler outros livros deles, e dizia, quase inocentemente – nunca se é inocente em nada, nem aos dez anos – que eram os meus escritores favoritos. E, a partir daí, reconheço-o, comecei a ler a sério, mais por vontade de ser uma melhor leitora do que pelo livro em si. Ou, por outra, lia mais pelo prazer de ler do que pela fruição do livro.
No fundo, sempre quis imaginar. Criar um mundo e outro dentro do meu mundo, criar uma ilha sobre a minha ilha. Conceber um espaço que fosse para além do mar que rodeava os quatro pontos cardeais. Ser mais do que um ilhéu em contínuo contentamento com o que estava diante dos seus olhos. Talvez por isso tenha crescido e me tornado tão complicada, tão preocupada com as minudências da vida que quase que não me consigo encantar com o que vejo.
Mas não, é provavelmente errado pensar isso de mim. Nada me faz mais feliz do que as pequenas coisas da vida, aquelas que me fazem regressar a essa infância. Essas pequenas coisas que vejo, todos os dias, e que me lembram sempre que sou eu mas, na essência, sou eu e o mundo inteiro dentro de mim, pronto a implodir e a precipitar em instantes.
Raramente me satisfaço com a satisfação e nunca consegui ser feliz no contentamento. Por isso tantas vezes escrevi que a minha felicidade é um momento, breve, frágil, perene - quanto mais o agarro, menos o possuo.
É como se nem todos os seres humanos tivessem vindo à Terra para serem felizes, e com isso lido eu muito bem.
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