Ele não lhe tinha pedido nada, nem o afecto de outrora nem o silêncio de agora. Tão pouco precisava daqueles olhares crispados, dos lábios franzidos, dos braços cruzados e daquele corpo restrito, fugindo ao toque,voltando as costas às sua voz.
Por isso, hoje, mais uma vez como em todo aquele mês (se calhar, há mais tempo, mas também ele gelara e o tempo não corre sobre a pele fria), saltou da cama, sem fazer barulho, fez café que pousou, numa caneca, sobre a mesa de cabeceira dela, tomou banho, arranjou-se e saíu, sem bons dias e sem festas no cabelo. E no caminho para o trabalho
primeiro a pé e a chuva gélida como granizo, as gotas por dentro da gola do sobretudo, descendo costas abaixo, encharcando-lhe a cintura apertada
Estás tão gordo, nem te cabem as calças
Mais para amar
E a gargalhada pronta, como é que alguém tão estupidamente feliz se pode tornar tão ridiculamente amargo?
depois no autocarro, comprimido entre odores, pode apostar que o pescoço desta miúda excessivamente arranjada cheira a um perfume adocicado, como fruta demasiado madura, quase podre, e estes dois atrás dele, de mão na barra de segurança e axilas ao ar, ou estavam sem gás em casa - e com aquele frio, quem é que toma banho de água sem ser a escaldar?- ou são porcos, mesmo. Porcos imundos com as axilas sob o seu nariz, que óptima ideia para uma manhã feliz.
(É a segunda vez que rima hoje e pergunta-se se aquele provérbio "quem rima sem querer é amado sem saber" também se aplica quando o único diálogo que vai tendo ainda é consigo próprio. Pergunta-se, logo depois, se quando deixar de falar consigo próprio é porque perdeu o juízo de vez ou porque recuperou a sanidade.)
Afunda-se nos auscultadores do leitor de mp3, presente de Natal dela quando celebraram o primeiro Natal juntos, ela grávida. Ainda celebravam o Natal então. Ainda falta meia hora para chegar.
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