9.12.08

O rei na barriga.

Eu já fui rei, disseste enquanto apagavas o cigarro no cinzeiro, exalando nuvens brancas pela boca esférica em ó, o tronco debruçado sobre a pequena coffe table da Feira da Ladra, eu fui rei e senhor do coração de uma menina e eu pensei que o serias agora, rei e senhor do meu coração, pequeno diabo angelical debruado a couro e correntes no peito despido mas só disse tanto egoísmo!, e lembro-me de frisar bem o acento no i, egoí-íiiis-mo, porque quando se frisam acentos habitualmente estamos impacientes, saturados, isto já que em momento algum me tinhas dito que ela também reinara sobre o teu peito e isso cansa-me.

A sério, fui, casámos e tudo, passávamos domingos a ler o Expresso por uma ordem predefinida de suplementos, Única, Cartaz, Economia, páginas brancas, Imobiliário: eu, ela: Cartaz, páginas brancas, Imobiliário e Economia e deixava a Única para ler durante a semana nos transportes e, perante o meu ar de estupefacção, tu sempre, a sério, juro, a sério, porque é que não acreditas e esticavas as palmas das mãos mais alvas que o resto do corpo, nada aqui, nada nas mangas, a sério, a sério, ó Joana, a sério, juro.

Eu também juro que já não sabia se acreditava porque me tinham dito que não devia acreditar, porque não podia acreditar nem mais uma vez ou simplesmente porque me estavas a mentir, mas afinal não te conhecia e de peste bem embrulhada em papel e fita bonita passavas-me a soldadinho de chumbo, que ela ficara doente e tu cuidaras dela, mas fôra tudo muito rápido, que ela morrera, que tu ficaras só com os móveis do Ikea no apartamentozito em Arroios e, das mil coisas que me passavam pela cabeça, nenhuma delas era suficientemente clara para ser dita agora em voz alta e ficou assim um silêncio feito de espadas e vapor de água e uma janela ao nosso lado que mostrava um céu sem nesga de céu, só neblina e nuvens em recortes de diversos cinzentos mesclados. Quer dizer, silêncio silêncio nem era, porque primeiro juntaste as palmas uma com a outra, os cotovelos sobre os joelhos e o tronco continuadamente inclinado para diante, e fez clap e depois porque eu tamborilei os dedos, primeiro nas coxas, depois na madeira do banco, sobretudo porque fiquei sem saber o que dizer.

Posso roubar-te um? Ninguém pede cigarros assim. Peço eu. Então pede. Já pedi, ACABEI DE O FAZER! exasperei-me e tu levaste a tua mão ao meu pulso e eu achei que me fosses magoar porque odeias que levante a voz, mas não sei porque achei isto porque nunca me magoaste antes, não desta forma física, não explicitamente, não com hematomas e escoriações visíveis, Detesto saber que fumas por minha causa, enquanto empurravas o maço na minha direcção com a mão que não me agarrava o pulso, Não tenho lume, Eu também não, e a mesma mão que empurrara o maço procura agora no bolso e acaba por fazer-me chegar uma chama pequenina, e eu acendi o cigarro, dei o primeiro bafo e disse que não fumava por tua causa, já fumava antes de te conhecer

e não fumo quase nada, é só de vez em quando. Devia ser nunca. Que é isso agora? Não quero cuidar de ti quando estiveres doente. Também não quero cuidar de ti, meu grandesíssimo parvalhão, desperdício de economia humana e energia afectiva quando estiveres doente. Pois bem, também não te pedi nada e eu concentrei-me naquele cigarro e fixei o olhar no mesmo fumo com que há pouco desenhavas círculos no ar. Voltaram a passar-me imagens repetidas pela cabeça, como há pouco antes de chegares, o dia em que nos conhecemos, as bebidas que partilhámos, o amor que fizemos em cada cama, a tua expressão à minha espera num sítio qualquer quando eu invariavelmente me atrasava. A tua expressão hoje, quando me encontraste sentada na mesa à tua espera, de olhar meio perdido na parede branca com uma impressão de uma aguarela genérica Que pontual e eu que esperara dois anos para dizer esta piada, mesmo sabendo de antemão que hoje seríamos rios invertidos e sairíamos daqui afluentes orientadas para a montanha e o desgosto, Foi pela ânsia por te ver e tu riste-te provavelmente só porque é isso que se deve fazer quando alguém diz uma piada e eu ri-me também enquanto te apontava um lugar à minha frente, mas apeteceu-me logo chorar enquanto te desculpavas pela demora, Trânsito do caralho, e eu voltando a cabeça para o empregado já que não havia trânsito que desculpasse o que ali se ia passar Traga-me uma água, natural, e um café pingado, o senhor bebe uma coca-cola, obrigado, com sua licença, olhaste-me e viste-me por dentro e ainda ali hesitaste só mais uma vez, não no teu último gesto misericordioso, mas porque algures por dentro soubeste que era cedo demais Vou-te contar uma coisa, não vais acreditar. Conta.

O cigarro entre os lábios, eu a saber que vou senti-los na minha barriga sempre que estiver só, eu sei lá se pela última vez ou não, que merda esta de seguir caminhos separados, que merda, os dedos que não o seguravam cofiando a barba

Eu já fui rei e o empregado trouxe os pedidos. E eu arre, filho da puta do empregado, raios o partam mais a bica mal tirada e tu e a neblina ao teu lado, a vidraça embaciada adivinhando frio e eu arrepiada e os dois sem nada para dizer porque eu estava à espera que continuasses e eu para ti Então? e tu Tenho medo que gostes menos de mim. Ai a merda, como se isso fosse possível. E as tuas mãos no meu cabelo e o beijo muito longo e depois beijinhos nas pálpebras

e agora nem sei onde foi parar o cigarro, apagaste-o e eu nem dei conta

Um dia conto-te uma história, agora só te quero levar para casa.

4 comments:

Anonymous said...

fumar mata, é um facto. o resto... só nos rói por dentro.

Jorge Oppenheim said...

muito bom

M. said...

mexeu comigo isto.

Avram Garrison said...

Fiquei com uma grande sensação de déjà vu. Excelente, os meus parabéns!