26.5.09

When Joanna left me, May became December.

Por favor: apaga a luz quando fechares a porta.




Scott Walker :: When Joanna loved me

Ainda a perdes; agarra-a bem.

Há uma imagem algo vaga de duas pessoas correndo, uma ao lado da outra, respirando ruidosamente, ofegantes e afogueadas, de punhos fechados e passos simétricos e alinhados. Do outro lado do passeio, um casal arruma o saco do bebé na parte de trás do carrinho; ele olha para um dos corredores, adivinha-lhe o corpo esguio, os músculos esbatendo as curvas, é uma mulher e não desvia o olhar. Hoje não vai olhar assim nenhuma vez para a mãe do seu filho, embora reconheça naquela criança cada traço que o fez gostar dela da primeira vez que se viram tão igual à mãe tão perfeito.

Os dois retomam a marcha e ele empurra o carrito pelo passeio, desenha-se um sorriso em tubo de ensaio e o coração até se lhe enche de alegria quando levanta a roca de borracha do chão não deita ao chão senão perde o brinquedo! e ele adivinha o braço da mulher nas suas costas, é carregado e ansioso, aquele toque e ele suspira aliviando aquele peso com a ideia de que é o braço atlético da corredora que o abraça.

Há um sobressalto do carrinho que lhes estuca a marcha e, do outro lado onde passaram há pouco os corredores em grande velocidade, apoia-se um casal em bengalas, com o braço que está livre cruzado junto à cintura. Ele abraça a mulher sem olhá-la. Prevê-se naquela imagem; nunca correrá.

Equador

Enquanto o sono não chega como trapos andrajando-te a marcha, se fosses um pássaro de asas azul-cobalto livre na floresta da Tijuca, poderias cantar as canções que nunca esquecerias mesmo que amanhã eu te deixasse por outros solos. Sabes que me vou mas não te deixo nunca, estarei nestes troncos como seiva nutrindo, serei o âmbar que fossiliza as tuas recordações cristalizando-as de amarelo-Vénus. Se me deixares tu primeiro, persigo-te o vôo até Fez onde me doerá a vista pela tua ausência presença nas tinturarias anil. Doem-me os ossos ocos na antecipação.

24.5.09

I.

Sentou-se à beira da cama no seu quarto e estragou o aprumo em linhas rectas do edredão estendido. Um edredão uma vez branco agora amarelado, com relevos de losangos e hexágonos como uma bola de futebol. Como se fosse robotizado, pegou na sua mão direita e alisou as pregas do seu peso, o edredão novamente liso estendia-se agora até às duas almofadas de baínhas rendilhadas, altas, simétricas. À frente dele, um toucador com gavetas, um espelho onde evitava ver-se reflectido. Não precisava, já se sabia de cor. Àquela hora da madrugada (em que o sol ainda não nascera mas a noite já não estava cerrada), sabia que a directa lhe cavara olheiras negras e fundas sob os olhos, o álcool lhe secara os lábios, que empalideceram gretados e o cansaço o emagrecera. Garante sempre a si mesmo que não voltará a repetir noites destas - define-as assim "noites destas", por não saber distinguir esta de outras, por não saber discriminar isto daquilo, as duas das cinco da manhã. Sabe de um jantar em casa de um amigo, sabe de umas bebidas, sabe do sabor doce dos lábios de uma mulher (primeiro nos seus, depois no seu sexo, numa casa de banho enquanto ela lho chupava), sabe de ter voltado a olhar para ela quando ela subiu pelo seu corpo acima, levantando os joelhos do chão mijado e de como lhe veio o vómito à garganta, sabe só mais ou menos do táxi que o levou a casa.

Deixa cair o telemóvel no chão e o silêncio é tal que parece um tiro surdo. Deita-se com medo, treme, espera uns largos minutos. Apercebe-se que não foi desta que morreu e soergue-se. Há algo de extremamente asqueroso nisto tudo, vómito, sémen, o seu suor, que ignora propositadamente. Volta a fitar o telemóvel muito concentrado, tenta escrever uma sms. Primeiro não consegue abrir o separador "Criar mensagem nova", depois quando finalmente abre não sabe o que ia a escrever. Continua com o telemóvel na mão e descalça-se, a sola dos sapatos pegajosa. Lembra-se "Cheguei a casa. bjs" com muitos números e éles pelo meio porque não acerta nas teclas. Agora esqueceu-se do destinatário. Perde a paciência, manda o telemóvel para o chão.

Silêncio, outra vez. Já não se voltou a assustar com o barulho da queda. Puxa uma almofada e espalha-se na cama na perpendicular, os pés para o lado da janela, à esquerda. Já amanhece.

Antes de adormecer vem-lhe à cabeça que bebeu whisky. Ainda fecha os olhos com força mas não lhe ocorre mais nada. Subitamente, um novo silêncio, mais vazio, mole, caramelizado.