21.10.06

[ ]

Um homem sai de casa.

Morava num apartamento junto ao Castelo S. Jorge, um prédio antigo de alguma maneira recuperado. A vizinha de cima chamava-se dona Emília, era coscuvilheira mas boa cozinheira: desde pastéis de bacalhau a pães-de-ló, tudo lhe vinha parar às mãos quando chegava do trabalho. Os vizinhos do andar de baixo pintavam paredes com arte por encomenda, chegaram mesmo a pintar a parede do corredor que ligava o quarto do homem à sala.

Um homem sai de casa e tem as malas à porta.

Três malas cheias de momentos que foi coleccionando, discos e livros, fotografias e postais dos sítios que foi visitando, roupas que foi usando e gastando e deixando de usar. As malas, enormes, desproporcionais ao tamanho do seu coração - que encolhe a cada dia - ocupam toda a largura do passeio. A vizinhança chega-se à janela, curiosa. Ali no número 52 mora o senhor Jacinto, operário reformado, comunista com todas as suas forças. Chegou-se à janela e perguntou para a rua, visivelmente emocionado

"Então o senhor doutor vai-se embora?"

Ninguém lhe respondeu. A menina Aline - menina do cimo dos seus setenta anos- mulher do senhor Pereira do talho, doméstica toda a vida, fadista nas horas vagas, ouviu o senhor Jacinto e apressou-se a ir buscar uma peça de carne do lombo, que depositou no passeio, junto às malas.

Um homem sai de casa, tem as malas à porta e um saco com uma peça de carne do lombo.

Sobe as escadas mais uma vez para ir buscar dois ou três caixotes. Uma vida despedaçada, são cacos que transporta para outro lugar, para tentar recomeçar não a partir do zero, mas a partir da reconstrução de peças. Leva o passado atrás de si, para onde quer que vá, sem poder desprender-se dele. Tudo o resto que permanece é efémero. Quase superficial, não é só passado - é pretérito perfeito. Foi-se. Aquilo que o marcou visceralmente - pretéritos imperfeitos que ficam em cada caixote que transporta para a rua. Fragmentos em suspenso de vidas - não é só a sua que é assim - inacabadas.

Um homem sai de casa, tem as malas à porta, um saco com uma peça de carne do lombo, dois ou três caixotes contendo cacos e começa a chover.

De repente, mas não era nada que não prevera quem olhara para o céu essa manhã. Estava carregado, macilento. E o rio - da sua janela via-o bem - turvo e revolto, trazendo a sujidade de uma península inteira para vir dissolvê-la ao mar. Um relâmpago iluminara a rua parda, seguido de um trovão. A chuva começara logo de seguida. Recolheu-se a roupa a secar nos varandins, chamaram-se as crianças que brincavam na praceta. E a rua ficou vazia, só folhas e riachos de água que se formavam na beira da estrada, descendo, empurrando, tropeçando.

Um homem sai de casa, tem as malas à porta, um saco com uma peça de carne do lombo, dois ou três caixotes contendo cacos, começa a chover e não se vê ninguém na rua.

Está finalmente só. Um corpo vazio - ou pior, um coração vazio.Como uma telefonia avariada, que não recebe mas também não emite. No caso da telefonia, música, notícias, vozes sem rosto. No caso dele, emoções. Olha em redor antes de fechar a porta, duas vezes: primeiro ao sair do apartamento, depois ao sair do prédio. Ainda hesita da primeira vez: se deixasse as malas e os caixotes à porta - e alguém os fosse buscar, que não ele - podia tentar ser outro alguém ali entre aquelas paredes. Podia encher a casa com o seu presente e ignorar os pretéritos imperfeitos da sua vida. Decide, no entanto, cumprir-se. Ser ele próprio o determinista das suas acções. E desce as escadas; não queria ficar por ali. Ficar por ali seria acabar a vida que começara quando decidiu partir. E recomeçar a anterior. Ele não, queria uma vida nova com as pessoas de sempre- feito que conseguiria, a todo o custo.

Um dia a chuva há-de engolir o mundo, pensava ele quando era criança. Nunca pensou que nós acabamos por nos engolir a nós próprios de tão absortos que estamos com a possibilidade de mudar ou de permanecer. Que somos nós, e não a chuva ou o vento ou qualquer outra intempérie, quem tem a capacidade de nos engolir para voltar a ser. Ou engolir para acabar de vez.

Um homem sai de casa, tem as malas à porta, um saco com uma peça de carne do lombo, dois ou três caixotes contendo cacos, começa a chover, não se vê ninguém na rua e ele parte enfim.

No comments: