9.10.06

Julian 'Cannonball' Adderley (ou eu não percebo nada disto mas adorava perceber)

Começar por algum lado, iniciar, meter as mãos (e a alma) na massa, dar o corpo (e o coração) ao manifesto.

Há álbuns que sabem a instantes, sobremesas ou bons vinhos. Outros transportam-nos ou acompanham-nos ao longo de estações do ano. Preconceito ou não, o pouco (ou o pouquíssimo íssimo íssimo) jazz que conheço sempre me lembrou Outono. Os dois ou três álbuns que tenho foram sempre comprados entre o dia 21 de Setembro e o dia 20 de Dezembro. Geralmente, ainda com o disco debaixo do braço, apanhava chuva, punha o pé numa poça de água, bebia um chocolate quente.

A tradição manteve-se e novamente, mas desta vez seguindo o conselho de "ir pelo menos óbvio" (porque quando alguém sabe mais do que nós acerca de qualquer coisa anotamos as recomendações e cumprimo-las), sendo que o meu conhecimento jazzístico é tão parco que até o óbvio é menos óbvio, acolhi no seio da minha reduzida colecção de discos (é quase infame chamar-lhe colecção) esta deliciosa rodela:



Este Somethin' else - oh e como tem sido somethin' else na minha vida - é daquelas pérolas vendidas a onze euros e meio na FNAC. Onze euros e meio para comprar tranquilidade - na ausência de tranquilidade intrínseca à alma, uma pechincha!

Autumn leaves abre o álbum e faz jus a tudo o que disse acerca do Outono e de álbuns de jazz outonais. A cada nota soprada (ou devo dizer, tal é a calma, suspirada?) caem folhas de árvores caducas, que primeiro dançam no ar, ao ritmo do piano do Hank Jones

further investigation tells me: este álbum tem um elenco de luxo

depois lentamente escorregam, como se o vento fosse caramelo líquido, até ao chão onde tombam, vivas. Porque a diferença entre estas Autumn leaves e aquelas que caem na minha rua e na tua é a presença de vitalidade, como se dissessem "Não me matas assim; ainda hei-de resistir ao Inverno".

Aqui não há estrelato nem domínio, cada músico entra, rigorosamente trajado para tal baile de gala, Art Blakey num registo suave, fazendo-nos fechar os olhos e inspirar fundo a cada nota de saxofone, e a faixa aquece sempre em lamento alegre (as pessoas alegres também às vezes estão tristes). 11 minutos de lareira acesa, de tons dourados e acastanhados, 11 minutos de se isto é jazz, nunca mais ouço outra coisa. Apaixonante.

A fasquia vai alta para a segunda faixa, pedimos-lhe "por favor deixa-me estar aqui onde ninguém me vê", mas Love for Sale está feita para acabar com a melancolia (to all of you, sullen lovers!). Agora o amor está à venda numa rua de Manhattan - que nunca visitei, mas também no calçadão de Copacabana (que sim, já visitei) ou nas escadas de Montmartre, com a Église Sacré Coeur ao fundo (ai Paris, Paris). O amor está à venda até numa tasca assimétrica no Bairro Alto, daquelas frequentadas por intelectuais barbudos. Mas agora o amor vende-se? Não sei. A promessa de amor sim. Impossível não jingar, não abanar o pé, não curtir quando se sabe que algures depois deste mato cerrado que é a desilusão - para quê o eufemismo?, falo de desgosto - há uma clareira onde entra o sol, onde se dissipam as mágoas e as lágrimas escondidas dão lugar a sorrisos longilíneos. E saltamos para a rua, e sentimos o Outono apoderar-se do vento e das nuvens, e não nos importamos porque Love for sale pede-nos, em linguagem saxofónica e trompética, "sai dessa, meu!". Aos cinco minutos e trinta, no entanto, nova surpresa!, afinal por cada amor há melancolia, grita Adderley ao saxofone, mas há discussão, e o piano e a bateria continuam optimistas. Eu também.

Ó alegria! Ó boa- disposição! Ó velha Joana de sempre, dançarina das danças improváveis, de ancas imparáveis! Os dedos estalam, tentam acompanhar, mas o corpo descoordena-se, há passos para a direita e mãos para a esquerda, há o pescoço que impele o queixo para a frente e para baixo. DANÇA DANÇA DANÇA, impera o saxofone e o trompete, e como evitá-lo? Afinal nesta canção dizem-me que há sempre mais qualquer coisa, ou não se chamasse a faixa Somethin' else. Será esta uma alternativa para mim? Ou uma alternativa, ou antes, um novo elemento a adicionar na conta de somar que é a música? Não se tratam da conjunção OU, mas sim, e agora vejo-o tão bem, de muitos sinais de mais, somando diálogos entre o Miles e o Julian 'Cannonball', que à terceira faixa são já meus velhos amigos de infância. Vou ali dançar. Volto na quarta faixa.

"One for Daddy-O" é sensual, é mesmo a mais sensual até agora. Sensual nesse primeiro sentido que pensaram - o sexual-, sim, mas também no sentido de "ACORDA e USA OS CINCO SENTIDOS!". Desperto embriagada. Doce jogo de sedução este, em que me deixo levar, em que o meu oponente (rival? parceiro?) me olha nos olhos e sem usar palavras, me diz as coisas mais bonitas. Regresso ao meu ninho de folhas outonais, esta canção traz-me demasiadas recordações boas, cheiros, sabores, beijos. Esses momentos são meus, ninguém mos tira. Estas canções são minhas agora. Ninguém mas tira.

De volta ao lamento - mas já o disse aqui e volto a dizê-lo, um lamento não tem de ser necessariamente triste. Mas este lamento é um bocadinho triste. Ou talvez não. Talvez seja apenas fatigado. Um lamento de cansaço, de saturação, "já chega ou vou-me embora". Julian não está cansado da música, pelo que me conta, nem está cansado de nada nem de ninguém. Não está cansado dele (e como é fácil ficarmos fartos de nós, que convivemos connosco repetidamente). Não sabe bem de que se cansa ele. Como te compreendo, Julian, dá cá mais cinco e um abraço. É uma imperial e um whisky para esta mesa, faz'avor. Este lamento transforma-se em segredo ao ouvido e eu não o conto a ninguém (era incapaz de trair a confiança deste meu bom amigo). Mas a segundos do fim, Julian satura-se de estar saturado e sai do bar finalmente em liberdade.

O tio da Alison (Alison's Uncle) só pode ser um moço bem-humorado. Esta música mal começa e já me fez rir. Julian saíu do bar mas não me deixou sozinha, entraram os meus amigos e estamos em alegre galhofa a conversar sobre tudo e sobre nada. E eles, na faixa, também conversam e riem. A bateria parece pedir "Hey Miles Davis, play it louder!" e o mestre corresponde e o Julian não se deixa ficar e se isto fosse uma rua eu desatava a correr como a Heidi pelos Alpes. Esta música faz-me teclar desenfreadamente, enche-me de energia, e eu mexo-me na prisão desta cadeira, mas é de festa que esta música fala. Volto para os meus amigos, caramba! estão cada vez mais bêbedos!, brindamos a cada solo de bateria e trauteamos a secção de sopro cada vez que entra para dar o mote a festa. E o mote é simples "Sejam felizes, porra!". Como um filme que acaba bem, com os créditos finais a passar em fundo preto, saio da sala onde decorreu a sessão.

A festa continua cá fora.



Para ler a sério sobre Julian 'Cannonball' Adderley, podem consultar este, aquele ou o outro sites.

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