31.10.06

Ensaio sobre o amor - parte I

Há uma criança que brinca apesar da chuva em seu redor. Tem um camião de folha - folha apesar de estarmos em 2006- vermelho e azul e um auto-tanque dos bombeiros. No canteiro da borracheira, o camião despistou-se e o auto-tanque dirige-se ao local a alta velocidade, uivando "uú uú uú", a boca do menino desenhando um beicinho "uú uú uú".

Qem o vê, ali a brincar, ama-o subitamente. Deixa de ser uma criança que brinca com os seus carrinhos para ser um rasgo de luz na vida de alguém. E esse alguém, sem dar conta, é preenchido por um calor intenso, aquele calor que nos surpreende num dia frio de Inverno em que o céu está absolutamente azul.

Não consigo perceber o que nos faz amar alguém. E hoje, este verbo tão determinante, "amar", é usado de forma bem mais abrangente do que o amor por outra pessoa, de sexo igual ou diferente, que visa juntar duas vidas numa só. Hoje "amar" é bem mais do que isso.

Amar é um verbo imperativo independentemente da forma verbal em que está conjugado. Há uma necessidade - e estou a ser bem limitativa quando escrevo necessidade -, há mesmo uma qualquer vontade intrínseca em amar.

Nascemos e já amamos alguém. Ou somos, no mínimo, amados. Mas eu acredito que amamos. O meu irmão reconhece a minha mãe, o seu peito, a sua voz, o seu cheiro, mesmo que a única coisa que os seus olhos reconheçam seja um jogo de sombra e luminosidade.

Depois a cada dia que passa da vida que a cada dia se torna maior, vamos abrindo o coração a mais e mais pessoas. E é isto que me põe pensativa. "Vamos abrindo o coração"? Nós vamos abrindo o coração? Ou vão-nos abrindo o coração?

Se de alguma maneira é praticamente unânime que amar faz parte do nosso código e é independente de pressões exteriores, o que é que determina que amemos alguém?

Já não via o meu irmão há quase um mês. Esquecera-me (?) do quanto gostei dele a primeira vez que o vi. Mas desta vez foi completamente diferente. Ontem quando acordei, ouvi-o gemer de satisfação enquanto tomava banho, fui vê-lo sentado/ encostado na banheira e toda eu fui ternura. Ternura como a que sentimos pela criança que brinca com o camião numa calçada. E não é isso que se sente por um irmão. É mais do que ternura. E esse mais veio depois. "Joana, seca-o." E eu peguei nele, no meu irmão e ele acomodou-se aos meus braços e, por entre toda aquela paz, mergulhou o seu olhar miúdo dentro do meu. Eu senti amor, o que foi marcante porque noutras relações não conseguimos determinar quando é que o sentimos. Mas ali foi bem claro- o amor, na sua forma mais genuína, porque desprovido de interesse ou intolerância.

Como um amigo meu que foi recentemente pai me disse: "de repente olhei para o miúdo e pensei 'sou pai dele' e agora amo-o mais do que à própria vida".

(continua)

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