24.3.05

A inadaptada

Hoje não ia beber café. Nem tocar num cigarro que fosse.
Hoje ia sentir o vento frio da Primavera, os primeiros raios preguiçosos de Sol, ouvir os pardais cantar enquanto lia o Jornal (mesmo as letras pequeninas). Ia pedir um chá, se calhar uma torrada.

Sabia-se dona da sua vida, do seu nariz. Reconhecia-se em controlo do seu pequeno mundo, livre de interferências, de pressões externas. Mas não conseguia encontrar uma razão que desse sentido ao que ela própria sacrificava. Em nome de quê?

Admitia poder mudar fosse o que fosse no jogo: os peões, as regras, os dados. Eliminaria jogadores se achasse necessário, erraria na contagem dos pontos dos dados se assim o entendesse, interpretaria as leis, as condutas como desejasse. Todo o seu poder parecia-lhe, no entanto, obsoleto, porque nessa noite não dormira, passara-a a ouvir Rodrigo Leão e a reflectir sobre as súbitas mudanças a que se tinha imposto no último mês.

De repente tudo lhe pareceu vazio; ela própria era apenas um saco de pele, músculos e ossos sem conteúdo.

Levantou-se da cama nessa manhã como agora se levantava da mesa do café, com lágrimas nos olhos, com um aperto no estômago, um formigueiro nos membros, os dedos das mãos a tremer. Fazia o que queria e, até então, tinha achado que isso era ser livre, mas arriscara demasiado as vidas de outras pessoas e agora arrependia-se.

Tinha-se esquecido que a liberdade própria acaba quando interfere com a liberdade do outro. Ela interferira demasiado e, agindo assim, ferira.

Chegara ao momento de se redimir, mas como? Sempre fora a inadaptada dentro do seu próprio jogo, uma mulher ocupada, atraente e interessante mas que, no interior, não encaixava em qualquer contexto onde se inserisse.
Hoje ia ouvir as histórias, os casos, os factos da vida- todos desde que não fossem seus. Ia ter em atenção os sonhos das crianças, dos jovens, dos adultos e dos velhos e não ia dizer "Bah! Utopias!" porque sabia que a ela sempre lhe faltou o sonho.

Sem o sonho e sem a capacidade de receber, era uma inadaptada.

"Tell me your name, tell me your story 'cause I'm into it, runnin' through life like a misfit" Elefant

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