17.2.07

À tarde

Para o Sebastião

Tinham deixado de discutir. Ou melhor, tinham deixado de discutir pelo que interessava, e por ora debatiam qual o melhor lote de Nespresso, onde ir jantar fora, as cuecas no chão, a tampa da sanita, a hora do despertador. Ele por quase nada levantava a voz; ela por quase tudo contrariava-o.

O apartamento num bairro típico qualquer ou a mudança para outra cidade ou país já não os fazia conversar. Ele respondia "hmhm depois vemos." e ela também já não puxava o assunto, farta que estava de ouvir aquela resposta, mas bem se lembra da primeira vez que ele falara nisso, num miradouro com vista para o rio.

Podíamos morar juntos e adormecer e acordar a ver o rio.

E ela na altura não soube o que lhe responder e hoje não sabe porque raio não lhe disse que sim, que também o amava, em vez da festa desajeitada no cabelo que realmente acabou por fazer. Porque ela olhava para ele e encolhia os ombros, mas sabia que nada daquilo era indiferença.

Mas também desde aquela festa no cabelo que ele deixara de tentar percebê-la. Desistira de fazê-la acreditar neles, porque no fundo era isso que ele achava: que ela não sabia o que estava a fazer com ele. E ele deixara de saber o que estava a fazer com ela.

Hoje, combinaram almoçar. Ele chegou mais cedo que o habitual (nestas coisas, o cliché é ela chegar tarde e assim foi), escolheu uma mesa à janela; pela rua atravessava-se o eléctrico, para cima para baixo, para cima para baixo. Ele não fuma, mas nesse dia precisou de o fazer e pediu ao empregado que lhe trouxesse um maço para a mesa. Hesitou na marca, teve que pedir isqueiro.

Ele tinha a certeza: ela fartou-se. E o medo, que até então nunca sentira por nada nem ninguém, apoderou-se dele e a mão direita ocupada fazia-o sentir-se mais seguro. A falsa sensação de que se acalmava a cada passa inebriou-o e ele ria agora, sozinho, naquela mesa. E cantarolava o JP Simões, que vinha a ouvir no carro, a caminho.

Tinha-te a ti e tinha paz num país que era ainda sonho
Onde a tristeza não tinha lugar
Pois era uma canção que não te ouvi cantar
No tempo das crianças não se pode chorar

Ela não chegava e ele cantarolava e ria, tão triste, ali só.

Ela chegou e desfez-se em desculpas. E mal estava sentada, perguntou-lhe "desde quando é que fumas?".

"Desde hoje" e ele não viu para além daquela crítica em forma de pergunta; não leu no vislumbre doce do maço sobre a mesa o "amo-te tanto, e se fumares podes ficar doente e eu não quero." A comunicação sem palavras que só existe se for comunicação com atenção. As trocas de olhares equívocas, ele ouvia

Já não te amo.

quando ela teria dito

Amo-te tanto, meu tolo.

Ele usou as palavras para:

- Bom, ambos sabemos porque me trouxeste até aqui. Porque não queres ir para além daqui. Nada que nunca me tenha passado pela cabeça. Sobretudo ultimamente. Passou. Escusamos de almoçar juntos e de à sobremesa me dizeres que acabou tudo, que não sou eu, és tu, para eu ficar com a mousse de chocolate entalada na garganta, que depois a mousse não sobe nem desce e isso não pode fazer bem à minha esofagite. E, já agora, eu sei que sou eu e não és tu.

Ela não retorquiu logo. Enfiou a cabeça dentro de um saco e tirou de lá prospectos de uma imobiliária. Apartamentos para comprar com obra por concluir, recém-acabados, restaurados. Ele apagou o terceiro cigarro e levou com aquilo no prato vazio, as folhas pousaram sobre o guardanapo de pano dobrado em quatro, não usado. Ela não retorquiu, aliás. Levantou-se, os olhos bem abertos para não chorar em frente dele, a pele num arrepio (de frio? de ofensa?). E foi-se embora.

*******************

Não acendera as luzes desde que chegara a casa. Tirou o cinzeiro de dentro do armário e sentou-se no chão, mas encostado ao sofá, olhos postos no vazio da janela por onde só se via o entardecer cinzento e pantanoso.

E a alma dele, cinzenta e pantanosa.

Ela chegou, na breve desculpa de tirar de casa dele o pouco que levara. A conjuntiva sanguinolenta na certeza de só ter parado de chorar já no corredor do prédio.

Perguntou-lhe "Ficamos assim?": ele não desviou o olhar da janela e não disse palavra, solenemente fumando o cigarro. Ela fingiu ter perguntado aquilo por descarga de consciência com um encolher de ombros e um revirar das íris e foi para o quarto encher a mochila que trouxera, vazia, a tornar-se pesada.

E a alma dela, pesada e vazia.

Pôs a mochila às costas e dirigiu-se para a porta.

"A chave está aqui na mesa."

"Espera."

Espera.

"Não vás."

Não entres tão depressa nessa noite escura. E a mão dela sobre a maçaneta da porta, a mochila que pesava sobre os ombros.

"Vamos ao Rio, os dois. Comprei os bilhetes de avião, o vôo é daqui a nada, vamos."

"Isso não se faz. Há quatro horas disseste-me que acabou. Isto não se faz."

"Por favor, vem."

O olhar dele invadiu-a por dentro como quando se apaixonaram e ele estendeu-lhe a mão. "Anda."

Ela pousou a mochila e toda ela tremia de entusiasmo, de medo, de risco. Deu-lhe a mão.

Deram as mãos.

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