Há que dizê-lo com franqueza: a ideia destas versões é criativa, divertida, quase insolente. Agarrar num punhado de canções ligeiras, abrilhantá-las com purpurinas (ao escrever esta palavra lembrei-me daquela odiável publicidade das "purpurinas? Vou já contar à Rita!"), trompetes e clarinetes e fazer de todas elas danças de salão animadas. A ideia podia de facto ser só criativa, divertida, quase insolente, citando-me, o que já seria imenso, mas aqui é que a porca torce o rabo - ou, como eu e os arrumadores de carros gostamos de dizer, destroce-o.
Mark Ronson não ficou só pelo nível da ideia genial, também a concretizou em grande estilo. Vejamos.
A faixa nº 3 deste disco começa com o seguinte verso
Stop me oh-oh-oh stop me
Stop me if you think that you've heard this one before,
o que é bastante irónico, tendo em conta que se trata de um disco de versões.
A verdade é que não apetece parar o Ronson nem o senhor Daniel Merriweather, que empresta a voz a esta versão. Primeiro, pela audácia e a cara de pau de se fazer uma versão soul de uma canção da maior banda de sempre. Segundo, porque a versão é, juro-vos, muito boa. Terceiro, porque a Stop me (dos The Smiths, para os silly you desatentos) é uma boa canção até se cantada em bielorrussso pelo ventríloquo que faz a voz do pato Donaltim, com percussão - castanholas, daquelas de rancho folclórico - pela Fátima Lopes e nas cordas - dos sapatos - o Nuno Eiró (arre, que pandilha assustadora!).
Não, o tal Daniel não tem a densidade vocal do Morrissey, portanto também não manifesta a mesma desilusão que o Morrissey, aquele tédio urbano-depressivo que é pensar "olha, se já ouviste esta antes manda-me calar". É que nada mudou, eu ainda te amo, apenas um pouco menos que o habitual, meu amor, e cada palavra que nos remexe visceralmente no original ainda está aqui e ainda causa cólicas.
Não, não está aqui o Johnny Marr, mas estão violinos felizes, que dão asas a uma batida energética, que entra para as estrofes, tal como entra a banda toda no original. Na Stop me de 2007 não se está tão triste quanto se está quando se ouve a Stop me dos anos 80 e, em vez da sala do melhor amigo, onde se fumam charros e se choram lágrimas de desgosto amoroso - ou de moca? nunca se saberá -, está-se numa sala revestida a veludo, onde lustres brilhantes se suspendem do tecto e toda a banda toca para a plateia mais heterógenea que existe. E todos batem o pézinho.
Não, não foi cometido nenhum pecado mortal: o Morrissey poderá mesmo gabar-se e assumir, um dia, talvez, quem sabe?, "escrevi a Stop me a pensar no safado do Ronson, sou mesmo genial, não sou?". És e esta versão, em que não cantas nem nada, é a prova viva disso. E eu, tal como tu, nunca nunca menti.
Os The Zutons não devem ser a banda mais conhecida do cimo da Terra, nem tão pouco qualquer coisa que se aproxime disso. Alguns ouvidos atentos à MTV:2 já devem ter dado conta da existência pouco notória - e muito menos, notável - de tal banda. (Confesso que têm singles engraçaditos e que nunca ouvi o disco todo, mas adiante.) Sendo assim, não creio que a Valerie seja uma canção conhecida como são a Stop me dos Smiths, a Oh my god dos Kaiser Chiefs (para a qual o Ronson convidou l'enfant terrible mais vraiment adorable Lily Allen), a Just dos Radiohead (versão que se limita a ser curiosa). A Valerie, original dos Zutons, é, no entanto, a melhor canção deste disco. De seguida, a resposta que todos procuram: porquê?
Primeiro, porque tem a Amy Winehouse. E a Amy Winehouse é, simplesmente, a cantora, a voz, a celebridade, a anglófona, a eu-tinha-curvas-e-era-boa-agora-sou-anoréctica-e-feia, a bêbeda, a escandalosa, a tudo o que vocês pensarem!, do momento. No início do outro texto disse que as canções que mais rendem no Back to Black foram produzidas pelo Mark Ronson, mas não quis tirar crédito ao resto do trabalho. A Amy é a fusão de dois conceitos que tendem a beijar-se na testa nos últimos tempos: o eclectismo da música retro (massa de que o disco Versions é feito, como terão notado ao longo desta prosa aborrecida) e um ritmo que vem do hip-hop, do funk, é novo e é bom. A sua voz possui uma cadência e um alcance de que Amy nunca abusa - e faz ela muito bem. Representa, como a Beth Ditto dos Gossip, o girl power que tendencialmente surge na música: esta necessidade de manifestar a independência, a emancipação, a força de uma mulher, sem ser exageradamente feminista. Amy é amor.
Segundo, porque a bateria é-me familiar de não sei quê (na versão ao vivo não se nota, mas na gravada lembra-me os Strokes, provavelmente porque os Zutons são uma daquelas bandas pós-Strokes que parecem reminiscentes dos Strokes, os quais por sua vez são reminiscentes dos The Cars.)
Terceiro, porque é uma canção leve e despretensiosa mas rica, como uma salada de Verão. Está lá tudo na mais perfeita das harmonias: a tal da Amy, a tal da bateria, o tal do ritmo que vem sendo regra e uma orquestra com a boca no trompete.
Quarto, porque é obrigatório dar algum crédito aos Zutons: a letra é bonita, fica no ouvido, diz "won't you come on over, stop making a fool out of me, why don't you come on over, Valerie?" e, [demasiado] pessoalmente, deu azo a mensagens de telemóvel bonitas nos últimos tempos.
Quinto, porque é quentinha como um raio de sol e revigorante como um mergulho no mar e/ ou uma caipirinha. Não se quer mais nada do Verão senão isso, não é?
(É preocupantemente difícil encontrar um vídeo da Valerie cantada pela Amy quando sóbria. Não estou a brincar.)
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