23.1.07

Parabéns ao Desumanos.

Um piano toca dolente e enche a tarde, ao longe. As chaves - um molho enorme, com chaves de todos os formatos - está a um canto da entrada, talvez deixadas cair por alguém que entrou à pressa.

Há um bilhete sobre a mesinha da sala, a única mesa de todo o apartamento. Vazio.

Segura o bilhete entre os lábios, já em miúda a mãe lhe dizia que aquilo era pouco higiénico mas criara essa mania. Habituara-se a fazer tudo ao mesmo tempo, jantar enquanto estudava, ver televisão enquanto fazia a depilação, falar ao telefone enquanto se arranjava. Sempre com o bilhete nos lábios, e ainda sem o ler, abre as cortinas e as persianas dos grandes janelões da sala. Já não precisa de acender a luz, porque o sol ocupa o espaço deixado livre pela ausência dos móveis. Ilumina o grande armário dos discos, onde vinis alinham-se com cds em estantes oblíquas. Decide ouvir música antes de seja o que for. Antes de pousar a mala, a pasta com a papelada do escritório, o saco do supermercado.

Levantou o braço do gira-discos ainda antes de escolher o que queria ouvir. Apetecia-lhe ouvir qualquer coisa onde se sobrepusesse o trompete. Apetecia-lhe dançar para que a felicidade que sentia inundasse aquelas paredes vazias, como se de quadros de Magritte se tratasse.

Ceci n'est pas une pipe. C'est seulement joie de vivre.

Já ouve Donald Byrd enquanto pousa tudo o que havia para pousar. Finalmente o bilhete passa para as suas mãos.

Volto logo. Logo. O mais rápido que puder. Está um dia lindo, parecia que ia chover e começou o sol a brilhar desta maneira, viste? Fui buscar coisas a casa. Trago jantar. Ou vamos jantar fora. Ou ficamos por casa na cama. Ia escrever "a comer-nos" mas achei demasiado porco. Vais guardar este bilhete? "O primeiro bilhete que ele me deixou na nossa casa nova"? Se soubesses o quanto te amo. Já temos gás e internet. Quero-te encontrar a dançar. Ou dentro de um banho. Prometo juntar-me a ti, independemente do que estiveres a fazer quando eu chegar. Mesmo que estejas a lavar os dentes. Temos internet, já disse? Eu amo-te muito. Até já, num já que são horas que serão séculos.

Guardou o papel no bolso e agora rodopia pela sala. Há pó que se eleva com os seus passos. Sabe que é delicada e que dança bem, sobretudo agora que ninguém a vê. Os olhos estão abertos porque pôs-se a imaginar cada canto daquela sala com os móveis e as fotografias que deseja trazer. Gradualmente deixa de ser ela quem dança, uma força que se move para além dela mas que não a força a nada. Tem que arrumar alguns dos caixotes que lhe ocupam aquele lado da - ou melhor, pensa imediatamente, os caixotes que lhe ocupam a zona do escritório. É talvez a última dança que fará sozinha naquela sala vazia. Amanhã chegará um sofá, uma estante, as molduras de fotografias.

Fecha os olhos e sente nos seus lábios as bocas de quem já beijou. O rosto abre-se em alegria. Agora beija quem sempre quis beijar. Como se já o conhecesse do útero e tivesse que ter andado à procura cá fora. Contorce-se de prazer, o trompete sobe, sob ele há batida funk, quente. Sob ele há uma viagem.

Empilha dois caixotes diante da janela e vai mudar de disco. Escolhe o Chico Buarque, escolhe o Brasil como ponto de partida. Senta-se nos caixotes e aproveita aquele final de tarde absurdo. Absurdo de tão bonito. O céu estende-se na potencialidade infinita de ser feliz. Aqui, agora.

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