30.4.07

Dizem que o açúcar faz mal.

Há lugares que são nossos para sempre, mesmo que a eles nunca regressemos. Quatro paredes de história desconhecida, um tecto bolorento, um soalho que estala no vazio. Penso

fui feliz ali

e fui, e sou-o agora porque penso nisso e volto a sê-lo. Eventualmente poderias ripostar comigo - nunca concordámos em coisas insignificantes - e dizeres-me que quando fechei a porta, o momento acabara-se, a energia esgotara-se e o que é já era. Mas na rua ainda demos a mão e na viagem de eléctrico - o 28, sempre, acima e abaixo por toda a cidade que interessa - lembro-me que encostei a minha têmpora direita

oh por favor, senhoras à janela

ao teu ombro esquerdo e que me afagaste a cabeça e eu vi, e não mo podes negar, que olhaste para mim e derreteste-te em doçura perante o meu cansaço e a minha cara franzida do sol.

Não sei porque te fez Deus tão doce.

Como os caramelos que a minha bisavó Julieta dava aos Domingos, sempre antes de ir para casa e lhe dar um beijinho na bochecha. A avó Julieta era grande e morreu já velha. Velhinha. Às vezes quero lembrar-me dela e não sou capaz e fico muito triste comigo porque sei que gostava muito dela. Ela era grande mas agora que cresci, julgo que não era maior do que eu e eu é que era pequena demais para o tamanho dela. Lembro-me que fazia bolinhos na frigideira, bifinhos de vaca que picavam na língua e eu adorava e bolos, muito bolos, bolos de tudo e mais alguma coisa. Não me lembro de ela me pegar ao colo nem de conversar comigo, ou talvez me lembre, se me esforçar. Uma vez deu-me um cabritinho acabado de nascer para o colo e passou-me o biberão.

Tens de o deixar quente

E eu não vi a minha avó fria nem me despedi dela nem a vi morrer. Num domingo fomos jantar a casa dela e eu comi os bolinhos na frigideira, os bifinhos, os bolos e ela deu-me caramelos e Galak Buttons antes de me ir embora. Angustia-me não me recordar se a beijei nesse dia ou se estava simplesmente entretida a comer os Galak Buttons ou aqueles chocolates com molho por dentro que vinham dentro de pratas coloridas. Quero tanto que a memória me leve para esse dia e me mostre o beijo que lhe dei.

Porque na manhã seguinte atendi o telefone e a minha avó, nora da minha bisavó Julieta, disse-me

Passa o telefone à mamã porque a avó Julieta está no Hospital.

E eu estava com um conjunto Benetton, camisola amarela e saia rosa choque e fui trocar porque estava triste, bem mais triste que o amarelo e o rosa da roupa Benetton. Não voltei a ver a minha avó, que morreu no hospital e eu não fui ao seu funeral.

Mas a casa dela será sempre a casa dela e sempre que vamos lá e juntamo-nos todos - os filhos, os netos, os bisnetos e os maridos e mulheres desta gente toda - é ainda

Vamos a casa da avó Julieta

que dizemos.

Portanto, amor, há lkugares que são para sempre nossos e aquele quarto será sempre nosso e aquelas paredes que nos viram amarmo-nos sem e agoras ou entãos encarcerão para sempre aquilo que existiu.

Tal como o meu coração guardou a tua doçura. Não sei mesmo porque te fez Deus tão doce.

26.4.07

D de dado

D de Dário, D de dia, D de David Bowie, D de dinâmica, D de diarreia, D de disco, D de David Lynch, D de diabrura, D de directo, D de Diesel, D de diferente.

[Só para mais um post com título começado pela letra D.]

Definições

Às vezes é como se me segurassem na tripa e ma revirassem e apertassem a mucosa entre os dedos como se a quisessem perfurar. Outras vezes é bom.

25.4.07

Da liberdade

De vos poder mostrar o que quero mostrar, de nos podermos expôr apenas e só o quanto nos quisermos expôr, de podermos partilhar aquilo que queremos partilhar, de podermos viver de acordo com aquilo que somos.

Do sentido da solidariedade - e não da caridade. Do sentido da justiça - e não do conformismo.

Da igualdade nos valores, nas decisões, nas oportunidades, nos juízos. Do direito à diferença.

Da liberdade.

22.4.07

Dois ENORMES álbuns





Eu que torcia o nariz ao Brian Ferry por dar concertos no Casino de Vilamoura ou lá o que é para as tiazorras que vão grelhar para o Algarve no Verão, rendi-me a estes senhores. Tão bom.
Esta sala está cheia de destroços de mim; tantos e tão dispersos que já não sei quem é esta que se levanta pela manhã para ir para o trabalho. Fiz de mim uma jarra partida - e agora estou pela sala toda, pelos tacos de soalho, pelo sofá, pela mesinha do café.

Olho para mim ali atrás como que a partir de um retrovisor de um carro e assim não oiço o que tocam as estações de rádio dos outros carros, não sou eu agora como naquele tempo: fugida, ferida, fingida. E o era porque me doíam os ossos da pancada, doía-me a alma da queda vertiginosa, doía-me ser eu, porque não gostava do que era. Eu como objecto, elemento pura e simplesmente decorativo. Ser meramente acéfalo sem opinião nem vontade, que absorvia as vontades dos outros - ou do outro - e fazia delas sua bandeira.

Era como se eu não pudesse ser feliz ou, mesmo podendo, não quisesse porque não o merecia.

E por isso arranjei mil vestes em seda e brocados em cores garridas e com elas cobri o corpo nu, julgando erradamente que assim não me expunha - quando era exactamente o contrário, quanto mais mostrava as várias camadas, mais se via que aquelas camadas não eram a minha pele nem nunca o seriam.

Não se é - e este é é o verbo ser na sua forma mais abstracta - sem escolha, sem desfrute, sem mágoa. E antes de ser feliz e exigi-lo a si próprio e aos outros, há que ser - e sê-lo com orgulho.

Mmmmm

Há qualquer coisa especial nisto de chegar a casa a cheirar a ti. De te ter beijado a noite toda, sem vergonha na cara nem nos lábios. Tenho o coração a vaguear na expectativa de quem serás tu que me agarras com força, e que me aqueces o corpo todo com um olhar, e que me dás dentadas no pescoço porque és completamente parvo.

Não sei se estás a pensar em mim agora, mas eu estou a pensar em ti, por isso boa noite e dorme bem.

(E tens tanta falta de jeito para karaoke, és quase tão mau quanto eu.)

21.4.07

Casamento

Gostava de te pedir em casamento para que ficasses a olhar para mim com essa cara entre o terror, o descrédito e o gozo. Que me respondesses não e depois ríssemos juntos. Ou então que fugisses de mim a sete pés e me achasses doida. Ou me dissesses, peremptoriamente

eu nunca me hei-de casar

para depois eu poder pedir-te em casamento mesmo quando só quisesse comer um gelado.

Pedir-te-ia em casamento vezes sem conta, hoje, amanhã e daqui a um mês, e, se ainda estivéssemos juntos daqui a um ano, também o faria. Pedir-te-ia em casamento no metro, na praia, num miradouro, num restaurante, na cama ou na cozinha. Pedir-te ia em casamento de pé, sentada, deitada, de joelhos ou a fazer o pino.

É que eu também não quero casar contigo, sabes?

Gostava de te pedir em casamento porque seria a minha maneira atabalhoada de te dizer que gosto de ti.

All i wanna do is love you

Hoje soube que esta canção foi a última que o Curtis Mayfield gravou antes da sua morte em 1999.



Bran van 3000 feat. Curtis Mayfield :: Astounded

Curiosamente, foi esta canção que me fez ir descobrir o Curtis. (*) Hoje recordo-a. É uma canção boa para se ouvir em dias de coração aberto e sol na cara. E não o são sempre, senhor Curtis? Onde quer que esteja, obrigada mais uma vez. Descanse em paz.

(*) Faz-me lembrar o Grace do Jeff Buckley, que também só fui ouvir quando ele morreu. Silly me.

Nota: só mesmo eu para fazer um post póstumo com 8 anos de atraso.

17.4.07

Obra de Santa Engrácia é finalmente inaugurada



Em rodapé: "O Túnel do Marquês foi finalmente inugurado. A cerimónia decorreu durante a noite. Não foram servidos comes, mas bebes sim. A já tão esperada passagem de meios de transporte veio confirmar a perfeita suavidade do alcatrão. Não se encontrou nenhuma carruagem do Metro a obstruir a passagem."

Um típico caso de amor à primeira vista

Literalmente. Estava na secção de hip-hop de uma determinada multinacional que começa com F, acaba com C e no meio tem NA e a capa deste disco chamou-me à atenção. Meia hora depois, lá regressei com este amigo, mostrei-lhe a capa e ele disse que era a minha cara. "É tipo 4Hero e Plantlife, não gostas?". Gosto, pois, muito muito. Siga ouvir.

Adoro-o desde que o comecei a ouvir. Hip hop cítrico, melódico, harmonioso, refrescante. Um cubo de gelo (dos bons) neste calor primaveril inusitado.

Ao especial cuidado da mana Joana, que vai adorar, e dos demais leitores.

Amor em pacotinhos de açúcar, that's what it is.



Strange Fruit Project :: The Healing (myspace aqui)

P.S. Muito, mas mesmo muito cuidado com a faixa com a Erykah Badu.
P.P.S. E com a faixa Special, com uma moçoila chama Thesis (tese, em português).

Mmm

É um nada que é tudo. *

WARNING! You're entering the addictive area.

Há canções que nos entram pelo corpo como se fizessem parte de nós. Por mais que as ouçamos não parecem essas vezes nunca ser suficientes. Ouvimos, ouvimos, voltamos a ouvir, comemos um iogurte a ouvir, ouvimos, ouvimos de novo.

Não admira que a música soul se chame soul. Entranha-se pelos poros, pelos tegumentos, pelos músculos, pelos órgãos. Se há alma, a alma é isto: algo de tal forma intrincado a nós que a única coisa que sabemos sobre isso é que nos pertence para sempre. Mais resistente que o tempo e que o espaço, a nossa alma.

E a canção Beggin':: Frankie Valli and the Four Seasons.

(Clicar no nome da canção para seguir o link que vos levará a conhecer um vestígio de alma sob a forma de notas de música e palavras bonitas.)

13.4.07

Maybe he got the wrong counterclockwise



He said "No more loud music".

dEUS :: Theme from Turnpike

(Nada de novo, só o Tom Barman mais a sua gente. Devo sonhar de tempos a tempos com os dEUS porque acordo a cantar uma canção deles. Hoje foi esta. Como não tinha o disco cá na Madeira, fui procurar o vídeo no bendito youtube. Estraaaaaaanho.)

12.4.07

"I have weird memories of you."

Sonhei contigo. No sonho estavas inseguro - é-lo sempre, mas desta vez um pouco mais que o normal. Disseste-me que não estavas bem e ficaste a olhar-me intensamente, daquela maneira como só tu olhas, como sempre olhaste, os olhos doces de cão abandonado, o cinzento da íris perdido no nada e pousado no nunca. Não sorrias e eu estranhei.

Estavam mais pessoas, que conversavam comigo. Ignoravam-te ali no plâteau dos sonhos, mas não é suposto ninguém estranhar nada por ali. Aliás poderíamos ter voado juntos para um ponto distante e indeterminado que ninguém desconfiaria da veracidade do nosso vôo.

Perguntaste-me se podias ficar por ali comigo, eu respondi que sim, algo indiferente, e continuei a conversar com as outras pessoas que por lá estavam. Passaste grande parte do sonho a olhar-me furtivamente, como se não fosse tua intenção que eu reparasse. Falhaste, bom, pelo menos ali no sonho, e eu reparei.

Por isso não sei se quando me levantei da cadeira se estava só a provocar-te para que me seguisses, se tinha mesmo que ir embora para outro sonho qualquer. Sei que, já longe da vista das pessoas que estavam comigo antes de chegares, me beijaste as pálpebras superiores, a ponta do nariz, o queixo, me pediste desculpa e me beijaste a boca com mais vontade do que nunca.

Acordei depressa, com medo de voltar a magoar-me.

"I have weird memories of you" ou at least I have something to cling to.

11.4.07

A propósito d' "Os Grandes Portugueses" e da grande palhaçada que foi a vitória de Salazar

Não ia sequer tocar no assunto por aqui até ler, este fim de semana, a opinião mais acertada que jáli sobre isso. É do historiador José Mattoso (recomendo a leitura de toda a entrevista na Única, revista do Expresso, dia 06.04.07). Citando:

"[o resultado] Revela a perpetuação da mediocridade. Salazar surge como uma espécie de Messias, uma personagem capaz de resolver os problemas. Não nos sentíamos bem, não era isto que esperávamos da democracia. Precisamos de um chefe novo, então escolhemos um messias. É a mesma reacção que tivemos durante o período filipino com a figura de D. Sebastião. Hoje as pessoas projectam no Estado Novo questões como segurança, estabilidade ou a resolução dos seus problemas, e encontram na figura de Salazar a salvação."

Fez-me lembrar o Pessoa e aquela que, das obras portuguesas que conheço , é aquela que melhor transmite o "ser português" - a Mensagem, claro, onde o Messias, o Encoberto, o D. Sebastião, nomes diferentes para a mesma personagem, para a mesma esperança, é profusamente referido.

Portugal vai estar continuamente à espera do seu Salvador e, enquanto ele não chega - nunca chegará -, estará enterrado no lodo onde, a pouco e pouco, vai submergindo até que já nada reste.

[Tenho dias em que sou mais patriótica que o Viriato Lusitano, outros assim, pessimista.]

Talvez isto também ajude a explicar o sucesso do Alberto João Jardim na minha ilha. Ele surge como o Salvador, o responsável maior pela autonomia madeirense, o grande promotor e fundador da "Madeira Nova" - a região "livre" (este "livre" dá azo a mais um post), tranquila (onde não se viveu a conturbada época pós- 25 de Abril como no Continente), próspera.

Os madeirenses têm o seu Messias no poder, porque hão-de eles escolher qualquer outro para o seu lugar?

8.4.07

Kimiko Yoshida :: “Tudo o que não seja eu”, mas sejamos todos nós

O corpo de Kimiko não é lascivo nem causa arrepios de prazer. É uma mulher de largos ossos, cujas mamas não resistiram aos efeitos do tempo e da gravidade. O rosto, porém, é harmonioso, com lábios carnudos, olhos finamente delineados, traços estereotipicamente japoneses. A primeira vista de olhos sobre a exposição, arrumada em dois andares, um deles disposto em mezzanine sobre o outro, é difuso e divide-se entre a atracção e a repulsa – a vontade, confesso, foi de ignorar a sobrecarga de retratos e seguir para a sala seguinte.

Mas há algo neles que nos prende. Mais que prender, envolve-nos: à segunda vista de olhos, estamos irremediavelmente atraídos por aquelas imagens aparentemente iguais, de mulheres parecidas (irmãs?), cujo rosto, pescoço e decote (por vezes seios) estão pintados de preto ou de branco contra um fundo respectivamente preto ou branco. O visitante desprevenido, que desconhece a arte com que acaba de se deparar – eu -, aproxima-se e lê as legendas, também elas muito parecidas umas com as outras “The Bride of ...” ou “The ... Bride”. A curiosidade aguça o espírito e o espírito aguça a curiosidade, e o corpo senta-se confortavelmente para que a curiosidade seja minimamente satisfeita com o vídeo The Birth of a Geisha: a própria Kimiko desnudada a usar um pincel largo para daí a uns minutos, muita tinta branca e algum batôn vermelho depois, tornar-se quase irreconhecível como geisha.

Não há vontade explícita de nos sentirmos desconfortáveis mas também não se procura oferecer conforto. O rosto, que é sempre da mesma pessoa – da própria Kimiko - torna-se menos importante naquela sucessão de fotos e o destaque vai para os acessórios e as máscaras, sempre diferentes entre eles, sempre com algo em comum: a sua utilização identifica a noiva que é encarnada na imagem. E há acessórios dos quatro cantos do mundo, aliás, houvesse mais cantos do mundo e eles também estariam ali representados. Representados não, vividos. Kimiko não está apenas a mostrar aquelas noivas, está a encarná-las. A própria di-lo: “chamam ao meu trabalho auto-retratos, mas a arte é encarnação e eu estou a encarnar personagens, não sou eu nos retratos que faço” (transcrição não literal de uma sua citação). Para além dos países, encontramos Kimiko usando máscaras que são idiossincrasias do nosso tempo, Mao Tsé- Tung, Picatchu, Mickey, também eles se transformam em noivas ou são, no mínimo, noivos. E há também uma sequência que é, pelo menos, alusiva ao Japão em que são usados andrajos, em oposição ao corpo nú ou tapado por uma burka que víramos até então, e o fundo é colorido. O fundo é também colorido na noiva que é a Estátua da Liberdade – é encarnado. Volta a ser negro na recordação/ homenagem a Picasso – na noiva que é Toureira e na noiva de Guernica, angustiada sob uma lâmpada negra (existirá luz negra?) e fotografada de perfil.

Ser praticamente abalroada pela crueza daquelas noivas, tão díspares e ainda assim tão unidas pelo propósito de um suposto matrimónio, fez-me questionar qual o verdadeiro peso de uma cultura, de uma identidade, de uma nação, questões para as quais não obtive respostas imediatas; não pude, no entanto, deixar de reconhecer-me em cada uma daquelas noivas, apesar de não constar do catálogo uma “The Portuguese Bride”, ali estamos, nós mulheres, nós humanidade, unidas pela agitação, pelo medo, pela repressão, pela juvenilidade, pela alegria, pela serenidade, pela graça, pelo amor.

A verdadeira intenção de Kimiko? Desconheço-a. A noiva, ou melhor, a Noiva é Kimiko e deixa de o ser para mostrar, com toques de humor e ironia e com uma enorme sensibilidade, que pode ser geisha ou negra, pode ser oprimida ou livre, pode ser antiga ou contemporânea, pode viver na guerra ou na paz. Uma noiva pode mesmo ser um homem. Feminismo ou feminilidade?

Os dois: um nunca sobreviverá sem o outro.

Kimiko Yoshida, no Centro de Arte Moderna Casa das Mudas (Calheta, Madeira):
“TUDO O QUE NÃO SEJA EU” [a solo show - retrospective exhibition] - de 16. Mar a 26. Ago de 2007


[Texto escrito a pedido do Entrelinhas.]

2.4.07

Someone great

Não sei porque é que gosto tanto do O.C. : a música (lembro-me bem do episódio da primeira época em que dava a Float On dos Modest Mouse quando a Marissa estava em casa da Theresa, a banda preferida do Seth Cohen serem os Death Cab for Cutie, os Beastie Boys terem escolhido lançar o Ch-Check it out no episódio passado em Las Vegas, entre tantas outras bandas e tantas outras canções), a Mischa Barton, por ser a desequilibrada de quem se é incapaz de não se sentir ternura e por ser tão incrivelmente bonita e por usar roupas Marc Jacobs e clutches da Chanel como mais nenhuma miúda nascida em '87 (ou mesmo antes), o Seth Cohen, a personagem mais namorado perfeito da história da televisão com as suas parvoíces, o sarcasmo doce, a maneira esquisita de enrolar as palavras, o interesse desmesurado em BD e vela, o cavalinho de plástico, a indiezice, as camisolas às riscas.Não faço ideia porque gosto tanto do O.C. quando a verdade é que gosto, que vejo (e revejo) com todo o prazer os episódios em que a trama se adensa e o drama se intens[ific]a, e os momentos violentos são descontraídos por piadas, algum humor negro ("It's too early for that, even for a Cohen") e trocadilhos com palavras.

A Marissa morreu no último episódio da terceira época, nos braços do homem da vida dela, o Ryan. Na quarta época, agora a ser transmitida na Fox (long live Fox!), as personagens Ryan, Julie e Summer (sobretudo) aprendem a melhor forma para lidar com o luto pela perda de: a mulher da vida dele, a filha e a melhor amiga de sempre, respectivamente. Enquanto isso, na vida real, os produtores tiveram que aprender a melhor forma para lidar com o insucesso televisivo de um O.C. sem Marissa: encurtaram a série para 16 episódios, em vez dos tradicionais 25 ou 26. Ou isso ou o formato esgotou-se, hipótese com grande probabilidade de ser a correcta.

O episódio de hoje contou com a Black Swan do Thom Yorke e foi isso que me motivou a vir aqui, a esta hora da madrugada, escrever sobre o O.C.. The Eraser é o segundo melhor disco de 2006 em 2007 (o primeiro foi o Be He Me dos Annuals, cujo texto está prometido e surgirá em breve). O ano passado não tive paciência herética de ir ouvir a voz arrastada do Camões inglês, mas quando ouvi a Analyse nos créditos finais do The Prestige (é uma coisa muito dvd-like dizer créditos finais e é pior ainda escrevê-lo), percebi que aquele ficheiro zip ia servir para alguma coisa. Belíssimo álbum.

A Summer hoje confessou que, por ter que lidar com a morte da Marissa, não estava a conseguir amar o Seth. Já ouvi desculpas piores, portanto acredito nela: ela tem que lidar com aquilo sozinha. Ela perdeu a pessoa que está com ela desde criança e, provavelmente, quando a Marissa morreu a Summer perdeu parte de si. E com isso de perder parte de si estou eu familiarizada.

Ter que se levantar e erguer imediatamente quando nos cortaram os pés e nos partiram os joelhos é impossível. Não há ses, é realmente impossível e não acontece. O processo é mais longo do que isso e exige manter-se deitada, enrolada sobre si mesma, durante o tempo que levar o crescimento de novos pés e a consolidação das peças dos joelhos. Quando os membros estão finalmente recompostos, ter que pôr-se de pé e voltar a andar são reaquisições igualmente morosas e sacrificantes. Nesta fase, a fragilidade é tal que qualquer movimento brusco, impensado ou imprevisto nos faz regressar exactamente ao ponto inicial. Tudo isto leva o seu tempo e envolve muito medo. Um medo aterrador que surge a qualquer momento, perante qualquer situação. Um medo incapacitante, o mesmo que, mais tarde, impede que se salte e se mergulhe e faz com que se viva na obscuridade, no receio de voltar a perder os pés (em última análise, voltar a perder as asas).

O medo co-habita com a saudade. Não sei qual deles é mais nociceptivo para as vísceras. Para vos ser sincera, não tenho a certeza se isto de olhar à volta e perceber que pessoa X estaria completamente enquadrada em determinado contexto era realmente saudade, se era apenas teimosia. E como doeu a teimosia! Como doeu andar por Lisboa a dar com a cabeça nas paredes por cada burrice que cometia, completamente centrada em mim própria. Em mim e na minha estupidez.

What are the options when someone great is gone?

As opções não são opções. Não há opções de qualquer espécie, porque só há uma saída, diametralmente oposta à espiral de medo/saudade/teimosia/angústia em que se entrou. A saída é exactamente sair pela porta em que se entrou (e isto colocado desta forma parece a coisa mais óbvia e simples do mundo, mais-epá-és-burra-por-não-te-teres-afastado-antes). Só que essa saída é um desmame, é gradual e vai acontecendo. Um dia damos por nós e puf! fez-se o Chocapic e somos nós outra vez, mas com uma grande, uma enorme cicatriz no ventrículo esquerdo.

When someone great is gone. We're safe for the moment. Saved for the moment.

O James Murphy é genial e o Sound of Silver é melhor que o anterior e é melhor que aquela yeah yeah yeah yeah (a melhor música do disco ausente do alinhamento desse disco de sempre). E discos dos LCD fazem falta a todos os anos, sobretudo os ímpares (só porque me apetece, espero que compreendam, ainda estou um pouco zonza da espiral de onde saí).

2007 já é um bom ano porque existe o Sound of Silver, a Someone great, a Get innocuous e a All my friends. Tornou-se ainda melhor (ia falar disto noutro post, mas que se lixe, já que vou lançada aqui vai) porque o Johnny Marr juntou-se aos Modest Mouse para o We were dead before the ship even sank, o novo álbum dos MM. Eu explico: o guitarrista responsável pela forma como soavam os Smiths (e a prova disso é o Morrissey nunca ter soado da mesma forma a solo)- e, sem receios porque até na rádio já o disse, os Smiths são a minha banda sobre todas as bandas - juntou-se a uma das minhas bandas indie preferidas.

O Rodrigo (outro feliz com a contratação da época pelos MM) disse que já ninguém vê o O.C. em 2007. Nunca percebi porque gosto tanto do O.C., mas na verdade passa por lá tudo o que gosto. Até lá estou eu, se bem que disfarçada. E eu gosto muito de mim, como já deu para ver.