O corpo de Kimiko não é lascivo nem causa arrepios de prazer. É uma mulher de largos ossos, cujas mamas não resistiram aos efeitos do tempo e da gravidade. O rosto, porém, é harmonioso, com lábios carnudos, olhos finamente delineados, traços estereotipicamente japoneses. A primeira vista de olhos sobre a exposição, arrumada em dois andares, um deles disposto em mezzanine sobre o outro, é difuso e divide-se entre a atracção e a repulsa – a vontade, confesso, foi de ignorar a sobrecarga de retratos e seguir para a sala seguinte.
Mas há algo neles que nos prende. Mais que prender, envolve-nos: à segunda vista de olhos, estamos irremediavelmente atraídos por aquelas imagens aparentemente iguais, de mulheres parecidas (irmãs?), cujo rosto, pescoço e decote (por vezes seios) estão pintados de preto ou de branco contra um fundo respectivamente preto ou branco. O visitante desprevenido, que desconhece a arte com que acaba de se deparar – eu -, aproxima-se e lê as legendas, também elas muito parecidas umas com as outras “The Bride of ...” ou “The ... Bride”. A curiosidade aguça o espírito e o espírito aguça a curiosidade, e o corpo senta-se confortavelmente para que a curiosidade seja minimamente satisfeita com o vídeo The Birth of a Geisha: a própria Kimiko desnudada a usar um pincel largo para daí a uns minutos, muita tinta branca e algum batôn vermelho depois, tornar-se quase irreconhecível como geisha.
Não há vontade explícita de nos sentirmos desconfortáveis mas também não se procura oferecer conforto. O rosto, que é sempre da mesma pessoa – da própria Kimiko - torna-se menos importante naquela sucessão de fotos e o destaque vai para os acessórios e as máscaras, sempre diferentes entre eles, sempre com algo em comum: a sua utilização identifica a noiva que é encarnada na imagem. E há acessórios dos quatro cantos do mundo, aliás, houvesse mais cantos do mundo e eles também estariam ali representados. Representados não, vividos. Kimiko não está apenas a mostrar aquelas noivas, está a encarná-las. A própria di-lo: “chamam ao meu trabalho auto-retratos, mas a arte é encarnação e eu estou a encarnar personagens, não sou eu nos retratos que faço” (transcrição não literal de uma sua citação). Para além dos países, encontramos Kimiko usando máscaras que são idiossincrasias do nosso tempo, Mao Tsé- Tung, Picatchu, Mickey, também eles se transformam em noivas ou são, no mínimo, noivos. E há também uma sequência que é, pelo menos, alusiva ao Japão em que são usados andrajos, em oposição ao corpo nú ou tapado por uma burka que víramos até então, e o fundo é colorido. O fundo é também colorido na noiva que é a Estátua da Liberdade – é encarnado. Volta a ser negro na recordação/ homenagem a Picasso – na noiva que é Toureira e na noiva de Guernica, angustiada sob uma lâmpada negra (existirá luz negra?) e fotografada de perfil.
Ser praticamente abalroada pela crueza daquelas noivas, tão díspares e ainda assim tão unidas pelo propósito de um suposto matrimónio, fez-me questionar qual o verdadeiro peso de uma cultura, de uma identidade, de uma nação, questões para as quais não obtive respostas imediatas; não pude, no entanto, deixar de reconhecer-me em cada uma daquelas noivas, apesar de não constar do catálogo uma “The Portuguese Bride”, ali estamos, nós mulheres, nós humanidade, unidas pela agitação, pelo medo, pela repressão, pela juvenilidade, pela alegria, pela serenidade, pela graça, pelo amor.
A verdadeira intenção de Kimiko? Desconheço-a. A noiva, ou melhor, a Noiva é Kimiko e deixa de o ser para mostrar, com toques de humor e ironia e com uma enorme sensibilidade, que pode ser geisha ou negra, pode ser oprimida ou livre, pode ser antiga ou contemporânea, pode viver na guerra ou na paz. Uma noiva pode mesmo ser um homem. Feminismo ou feminilidade?
Os dois: um nunca sobreviverá sem o outro.
Kimiko Yoshida, no Centro de Arte Moderna Casa das Mudas (Calheta, Madeira):
“TUDO O QUE NÃO SEJA EU” [a solo show - retrospective exhibition] - de 16. Mar a 26. Ago de 2007
[Texto escrito a pedido do Entrelinhas.]
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