Tenho perfeita noção que os espaços entre as pedras da calçada são feitos de verdades negras e amorfas. Continuo a acreditar nisto, como talvez quem acredita que um dia houve uma explosão mesmo muito grande que rebentou com um ovo cósmico donde depois se soltaram montes de calhaus em forma de planetas e estrelas, e num deles a energia foi água e a água foi vida. É possível. É possível que os nossos passos pisem a verdade, às vezes indolentemente, outras tão depressa que quase nem a magoamos com o peso do corpo. É possível que passemos pela verdade vezes sem conta ao longo do dia, ao longo da vida, e nunca nos apercebamos dela, e ela depois doa (dói sempre). É possível que a verdade não seja verdade, ou não seja única, ou não seja só isso de não ser mentira. Só não chego a perceber porque raio se esconde a verdade no chão, quando estaria tão mais próxima de nós se andasse nas nossas mãos e fosse trocada todas as vezes que as nossas palmas tocassem outras. É que assim as verdades eram uma só, e se for mesmo verdade que cada um de nós está ligado a toda a gente do mundo, então um dia poderíamos ter tido como nossas tantas verdades quantas pessoas alcançássemos.
Um dia terei nas mãos mais verdades que mentiras e saberei distinguir as intenções das interjeições, e a estas duas poderei simplesmente marcá-las com a palavra lixo
(tenho uma caixa no quarto que serve para ir pondo lixo que não é bem lixo mas que um dia vai acabar por sê-lo, por enquanto é só um resto de coisas que foram ficando comigo e que, em abono da exactidão do discurso, nunca foram bem coisas, mas antes pessoas, emoções, receitas e bocados de músicas ou letras, algumas cartas de amor, aqui e ali, a maior parte delas nunca conheceram sequer viagem de ida)
guardá-las (às intenções e às interjeições) nessa caixa e deixá-las ali no canto do quarto, esquecidas por quem prefere sempre não esquecer.
Os bilhetes de concertos continuam fora da caixa. Como se os concertos - e a música, sempre a música - fossem mais verdade que tudo o que foi passando. Como se os concertos - e a música, outra vez - ficassem, enquanto o resto vai.
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